Me deixa gozar.
Sou de uma geração que cresceu sem celular ou internet, mas que acompanhou seus ídolos morrerem em decorrência da AIDS. Várias produções cinematográficas, cartilhas e campanhas nos alertavam sobre os perigos de se ter relação sem preservativos, por isso, ainda que os pais e professores não tivessem o hábito de falar sobre sexo conosco, a mídia se encarregava de fazê-lo.
Sem o acesso à internet e sem nunca ter ouvido falar em feminismo, o que sabíamos sobre prazer era o que conversávamos com os amigos, mas sem muita profundidade. A palavra clitóris, por exemplo, passou a fazer parte do meu vocabulário usual provavelmente depois dos 30.
Masturbação feminina, então, era raramente discutida, mas técnicas de como deixar os homens loucos de tesão, ah, essas eram compartilhadas nas rodas de conversas e em centenas de matérias de revistas femininas mensalmente: “20 maneiras de segurar seu homem”, “15 formas de se tornar irresistível”, “10 técnicas infalíveis para dar prazer ao seu namorado”… E por aí vai. Por muito tempo não nos questionamos sobre a razão pela qual as mesmas revistas pouco falavam no nosso prazer, até que surgiu a internet e com ela, a possibilidade de ter acesso à informação que antes não estava tão facilmente disponível.
As redes sociais propiciaram que mulheres se conectassem a ideias e a outras mulheres diferentes das que faziam parte de seu círculo. Se no núcleo de amigas a certeza de que as mulheres tinham dificuldade em atingir o orgasmo era algo tido como natural, fora dele pudemos descobrir que não, não é natural que grande parte das mulheres não atinja o orgasmo em suas relações.
De acordo com jornalista Luiza Furquim, no livro Você já é Feminista (ed. Pólen), até pouco tempo atrás, acredita-se que 50% das brasileiras sofriam de algum distúrbio de libido, mas hoje sabemos que muito dessa crença se deve mesmo à falta de informação e ao tabu que envolve nossos corpos.
Um exemplo de como a informação costuma nos ser negada é apresentado no documentário She’s beautiful when she’s angry, que explica como as feministas da segunda onda lutaram para que os anticoncepcionais viessem com bulas. Quando começaram a ser comercializados e prescritos, mulheres morreram em decorrência dos efeitos colaterais e as feministas tiveram que lutar pelo direito à informação sobre o medicamento que revolucionou nossa vida sexual. Essas mesmas feministas, notando que muito pouco se sabia sobre o nosso prazer e nossos órgãos genitais, organizaram mutirões que incentivavam as mulheres a se tocarem e a conhecer seus corpos, criando manuais voltados exclusivamente ao público feminino, visando principalmente, o aumento da consciência sobre nossos corpos e sobre nosso prazer.
O próprio clitóris, que sabemos hoje possuir uma infinidade de terminações nervosas, sendo muito maior do que se imaginava, foi constantemente apagado dos livros científicos e ao longo da História, leis e costumes tentaram controlar nosso orgasmo, conferindo a ele uma aura de pecado, tabu e negatividade que carregamos até hoje. Quantas mães conversam com suas filhas sobre masturbação? Quantas publicações são dedicadas ao assunto? De que forma somos incentivadas a conhecer nossos corpos e saber o que realmente nos dá prazer?
Nosso orgasmo foi considerado por muito tempo algo pouco importante, já que “a ciência” não confirmava sua existência, por isso, ainda hoje, a quantidade de mulheres que acredita ser ok não gozar em uma relação é tão grande que se reflete em pensamentos extremamente nocivos para nosso desenvolvimento e autoestima. Um dos mais nocivos é o que nos incentiva a manter relações ainda que sem vontade, afinal, “é normal a gente não gozar e os homens perdem o interesse se ficam muito tempo sem sexo”.
Tanto em narrativas ficcionais como nas conversas cotidianas, a imagem de mulheres transando e pensando em fazer as unhas, assistir TV ou fantasiando com o galã de algum filme é tão naturalizado que uma mulher que se recuse a realizar tal performance, é rapidamente advertida pelas amigas sobre a necessidade de se estar sempre disponível para o parceiro: “ah, amiga, você deve transar mesmo sem vontade, do contrário, pode perder o marido! ”. É essa ainda nossa função, não é mesmo? Manter os homens entretidos.
Por mais triste que essa constatação possa ser, nada parece chocar tanto algumas pessoas como o fato de alguém não ter desejo sexual. Uma mulher que se diz sexualmente liberada e tem várias relações em um período ainda é vista como uma rival, uma sem-vergonha… Mas experimente dizer que você não tem desejo algum e que está perfeitamente satisfeita com isso: rapidamente surgirão indicações de médicos, tratamentos e simpatias para que você resolva “o problema”. E vejam, não porque alguém se preocupa com o seu prazer, mas porque você não pode correr o risco de perder o marido.
Essa mentalidade indica que ainda temos muito o que avançar, mas graças ao maior acesso à informação, sabemos que o que antes era visto como distúrbio da libido feminina, muitas vezes é apenas um reflexo de uma série de fatores necessários para que a libido seja despertada. Sabemos que por mais que haja prazer na penetração, o canal vaginal possui poucas terminações nervosas, de forma que se fosse o contrário, o parto natural seria inconcebível. Por isso, nossas grandes fontes de prazer se localizam em alguns lugares estratégicos que precisam ser estimulados diferentemente do que acontece aos homens.
Embora o estímulo do clitóris possa resultar em respostas fisiológicas como uma boa lubrificação, a excitação feminina está ligada a uma série de fatores que são facilmente identificáveis com o mínimo de boa vontade, mas para isso, para que possamos dizer quais são, é preciso primeiramente que nos conheçamos melhor e que parem de achar que nosso gozo é um mito. É preciso que nos deixem gozar!
Por Dani Marino
Imagem destacada: “O Orgasmo Feminino”, materiais mistos sobre madeira, Cynthia Shaffer
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