Notas sobre heterossexualidade compulsória e abuso

Quando a gente lê feministas dizendo que pelo fato da heterossexualidade ser compulsória toda relação heterossexual contingente seria baseada em compulsoriedade, a gente vê a lacuna de reflexão crítica. Diria também que há falta de reflexão teórica, já que o conceito de “heterossexualidade compulsória” proveniente das teorias feministas (em especial, das pós-estruturalistas) não daria brecha para tais conclusões equivocadas se fossem lidas de maneira mais atenta.

Quem confunde a heterossexualidade como sistema e as relações contingentes que as pessoas estabelecem está sobrepondo equivocadamente uma questão em outra completamente diferente. Vejamos: o fato da heterossexualidade ser a norma, uma condição compulsória, não nos autorizaria prever que toda e qualquer relação estabelecida entre homens e mulheres no campo afetivo serão de tipo abusivo/compulsório.

É preciso entender como funciona uma estrutura pra não fazer esse tipo de confusão.

É nessas horas que a gente tem que afirmar o óbvio, e percebemos o quanto o óbvio não é tão óbvio assim. Quando se critica o fato da heterossexualidade ser compulsória não se está defendendo que homens e mulheres nunca mais poderão estabelecer relações entre si – sejam relações de qualquer tipo forem, incluindo as afetivas. Ao contrário: ao se criticar o fato da heterossexualidade ser compulsória se está tentando abrir brechas existenciais e políticas em direção a uma situação em que a relação entre homens e mulheres não seja marcada por relações de sujeição, ou seja, para que tais relações gerem bons encontros, ao invés de maus encontros.

Não se pode dizer, pela teoria, que todos os encontros entre homens e mulheres vão ser necessariamente ruins em virtude da estrutura de poder.

Ao dizer que a heterossexualidade é compulsória não está defendendo que homens e mulheres deixem de conviver juntos – se está sim, defendendo uma nova forma de convivência pautada na ética e na crítica de relações desiguais de poder. Justamente pelo fato da heterossexualidade compulsória como regime de poder ser uma construção sócio histórica, ela pode ser desconstruída.

Justamente pelo fato da heterossexualidade compulsória como regime de poder ser uma construção sócio histórica, ela pode ser desconstruída.

Então, para resumir:

1) a heterossexualidade – enquanto regime político que se situa sócio historicamente – é compulsória porque se baseia em relações de coerção que produzem normas
2) as relações contingentes entre pessoas não estão isentas de reproduzirem esta estrutura de poder – contudo, também não estão fadadas a reproduzi-la sem nenhuma forma de resistência ou contradição.

A passagem entre a estrutura (que é virtual) e o contingente (que é concreto) não é automática, não acontece de forma mecânica. É pelo fato da estrutura ser social e histórica que ela é passível de mudança, e é pelo fato das relações entre as pessoas serem contingentes que elas devem ser constantemente reiteradas em termos de uma ética dos encontros.

Então, não é pelo fato da estrutura ser compulsoriamente heterossexual e coerciva que estamos “reféns” como indivíduos da estrutura – o que inclui relacionamentos entre as pessoas.

Por Beatriz Pagliarini Bagagli
Imagem destacada: Frida Kahlo y Diego Rivera por Odette Valero

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