Trans, intersexo e bissexual
O desafio de descobrir a minha identidade tem sido intenso. Um processo que começou com uma carta do hospital das clínicas relatando ser portador de síndrome de insensibilidade a andrógenos (“alergia” a testosterona) que impossibilitou a finalização da formação de um genital masculino e contribuiu para, aos 9 meses de idade, por meio de uma cirurgia, feminilizar minha pessoa sem me consultar. Toda estrutura para legitimar uma violência e mutilação de meu corpo foi criada: Anamaria e família mudaram de bairro e recriaram raízes para esconder um segredo que só poderia ser revelado caso Ela/Eu perguntasse.
Cresci sentindo-me estranha e diferente das outras meninas. Não conseguia seguir a feminilidade hegemônica. Odiava meu corpo porque me lembrava que era uma “mulher incompleta” e isso seria um problema pra qualquer relacionamento pois, na lógica de minha criação e das idéias que concebi, seria difícil falar para um homem que eu não podia ter filhos, mesmo que eu pudesse adotar. Isso atestava minha incompletude.
Ouvir suas amigas falar de menstruação e sexo, mesmo ouvindo o discurso de “graças a Deus que você não sabe o que é uma cólica ou ver o sangue descer todo mês”… Minha mãe dizia: “você tem que se aceitar como é” – ou seja, uma mulher estranha, incompleta e que desconfiava que não sabia de tudo sobre mim.
Os relacionamentos rápidos que tive construíram uma visão triste do que era se relacionar. Por me sentir sozinha e com amigas namorando, me envolvi com duas “paixões” que queriam meu corpo. Sentia-me invadida para ser amada por eles, pois significava uma entrega minha de mão única, que me via num corpo adolescente com hormônios do outro lado em polvorosa. Homens me atraiam e eu me a apaixonava por vários, mas nunca me relacionei por causa do que vivi, ou seja, aproveitaram da minha inocência e das idéias religiosas de submissão da mulher, resolvi me fechar para o amor.
Era “anormal” e me restava a dedicação à amizade com a perda da identidade para as máscaras para sustentar amizades com a consciência de que ficaria sozinha e não merecia ter uma relação afetivo-sexual com alguém.
A decisão por buscar minha felicidade renasceu mais de doze anos depois do processo cirúrgico que finalizou a “normalização” binária desta pessoa intersexo, aos 20 anos. Descobri o segredo que me acompanhava e tudo fez sentido. O não encaixe ao binário de gênero hegemônico fazia sentido agora, e a partir de então o biológico não-binário legitimava minha compreensão identitária desencaixada. A minha sexualidade deu um salto ao sair do ambiente religioso e permitir vir a tona meu desejo sexual-afetivo por mulheres, que foi confirmado com uma paixão arrebatadora por uma moça em janeiro de 2016.
Um ou outro cara me atraia, mas mulheres sempre me fizeram vibrar. Desde antes de 2016 eu me sentia atraído por mulheres, e desconfiava ser bissexual, mas como majoritariamente me atraia por mulheres, entendia então que era lésbica. No meio do ano passado mais uma coisa se revelou: aprendi que bissexualidade não é apenas atração – 50% por homens e 50% por mulheres. Isso é uma falácia que surge para deslegitimar a bissexualidade, e que precisa ser esclarecida.
Ser intersexo e bissexual me contemplava, mas faltava algo. Criado como mulher, mas não me sentindo uma, tampouco me entendendo numa masculinidade hegemônica… também sempre me assumi como pessoa não-binária.
A compreensão da minha transição para a não-binaridade só fez sentido ao me reunir com o Organizativo Transidentidades e ver, nas falas de lá, legitimada minha pessoa trans não -binária. Esse processo está finalizado? Não. Acredito que tenho muito a construir e aprender, mas ao derrubar a última fronteira da aparência que era o cabelo, uma alegria tomou conta de mim e me faz vivo, pleno e consciente deste lindo processo.
Quer saber o que vem por aí? Acompanhe a nossa página e meu perfil pessoal e venha viver essa linda aventura comigo.
No dia nacional da visibilidade trans* quero declarar: sou trans não-binário, intersexo, bissexual, e nesse mar de invisibilidades digo que estou pleno, vivo, convicto e disposto a lutar por nós.
VIVA AS IDENTIDADES TRANS!
Por Amiel Modesto, da página Indefinida, onde o texto foi originalmente publicado em 29/01/2017, *dia da #VisibilidadeTrans. Imagem destacada: personagem intersex Astern, por Luminis Kanto
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