A culpa é do Juiz?
A questão recente do assédio sofrido por uma mulher em um ônibus em São Paulo e subsequente soltura do homem que o cometeu é delicada e complicada, mas seu debate é necessário. Já que, como bacharela em Direito, sou uma ótima bacharela em Ciências Sociais, essa reflexão resulta de conversas com inúmeros colegas que atuam com a advocacia, e convido os e as demais para manifestarem suas leituras sobre a melhor saída jurídica e social para o que ocorreu.
Após a notícia recente, da desconsideração do crime de estupro por parte da justiça, pipocaram reivindicações de revolta contra o Juiz, que teria sido insensível às perversas e insistentes violências sofridas pelas mulheres.
É preciso refletir, porém, sobre se o problema aqui foi, de fato, a posição do Juiz ou, no lugar disso, se é outro. Isso é essencial por um motivo óbvio: temos que saber, a partir dos acontecimentos empíricos, em que lugar(es) focar nossos enfrentamentos. A eficácia de qualquer reivindicação feita depende, necessariamente, de estar acertado esse ponto de partida.
Em 2009, a legislação dos crimes contra a dignidade sexual foi mudada: o assédio sexual e o atentado violento ao pudor foram extintos, sendo agregados em torno do estupro. Ocorre que, para ser configurado o estupro, é preciso “constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Constranger, aqui, tem sentido de coagir e, para que o artigo enquadre uma conduta, essa obrigação — com fins de concretizar o estupro — deve ser feita através de violência ou grave ameaça. Ou seja, não é só a existência da violência do ato em si (terrível e absolutamente inaceitável) que importa ao tipo penal, mas que ela apareça como meio para atingi-lo. Assim, por exemplo, tomar uma mulher a força para dar-lhe um beijo pode vir a ser enquadrado, dependendo da leitura sobre ato libidinoso, como crime de estupro.
Outra possibilidade que me passou pela mente seria pensar o caso como estupro de vulnerável, por a vítima estar adormecida durante o ocorrido. Mas isso também parece não se sustentar tecnicamente, como me informaram. Esse tipo penal é escrito para se ocupar dessa violência quando acomete indivíduos menores de 14 anos. Entretanto, também pode ser aplicado quando alguém, “por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência”. A pena para esse crime é a reclusão de 8 a 15 anos (o mais severo dos tipos de cumprimento, e o único que admite regime fechado desde o seu início).
Os problemas quanto a isso são vários: o próprio enquadramento como estupro é muito frágil, o conceito de ato libidinoso é extremamente vago e tem interpretação variada, para além de algumas manifestações tomadas como incontestes (contato da boca com um órgão sexual, masturbação, etc.). As situações que existem na margem cinza são filtradas pela cultura, muitas vezes machista, dos operadores da justiça, mas devem perpassar pelo chamado “princípio da proporcionalidade da pena” — e, nessa situação, seria realmente inviável condenar o indivíduo a uma pena ainda mais grave do que a do próprio estupro (que é de 6 a 10 anos de reclusão).
Uma alternativa que pareceria mais plausível ao caso concreto seria a de ato obsceno praticado em lugar público, punido com detenção, de três meses a um ano, ou multa. Entretanto, ela esbarra em seu teor exibicionista e na falta de contato. Afora essa possibilidade, a definição do tipo acabou sendo a de importunação ofensiva ao pudor, uma contravenção penal que prevê a pena de multa (portanto, que não enseja prisão preventiva).
Ainda, o indivíduo em questão apenas passou por uma audiência de custódia, onde se busca verificar se o flagrante deve ou não deve ser convertido em prisão preventiva — que é medida cautelar e não pode ser vista como forma de antecipar um cumprimento de pena (mesmo porque não houve nenhum julgamento de mérito, e ele ainda será processado e julgado criminalmente). Enfim, quanto às passagens que o indivíduo teria tido pela justiça, ao menos ao que se pode inferir, não são condenações e, portanto, ele não se configura como reincidente. Por isso, juridicamente, não mudam o cenário.
Bem, o Juiz do caso reconhece, em sua decisão, que o “ato praticado pelo indiciado é bastante grave, já que se masturbou e ejaculou em um ônibus cheio, em cima de uma passageira, que ficou, logicamente, bastante nervosa e traumatizada”. Também, que condutas como esta “violam gravemente a dignidade sexual das mulheres”, mas que não houve crime de estupro, pois esse “tem como núcleo típico constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
Ou seja, se trata de um Juiz que simplesmente respeitou o texto legal e não decidiu a partir de seus juízos de valor sobre a seriedade da conduta, apesar de afirmá-la (tampouco se deixou levar pela pressão coletiva, o que é correto, evitando-se um populismo punitivo). Como resposta a isso — cumprir a lei — já estão circulando imagens suas, acompanhadas dos lamentáveis e cada vez mais frequentes processos de justiçamento coletivo.
Para além dessa manifestação virtual, que julga o juiz que julgou corretamente, não se pode autorizar uma interpretação enviesada da lei que seja maléfica ao indivíduo, pois é preciso respeitar-se um princípio básico: o da legalidade. Portanto, a questão parece ser outra: existe uma lacuna legal entre a tipificação de crimes gravíssimos e de contravenções levíssimas, faltando um tipo intermediário, entre o estupro e a importunação ofensiva ao pudor ou o ato obsceno, que possa dar conta dessas situações. Ou seja: algo do âmbito do legislativo e não culpa do Juiz.
Existe uma lacuna legal entre a tipificação de crimes gravíssimos e de contravenções levíssimas.
Obviamente, reconhecer essas nuances não significa deixar de afirmar a seriedade e o horror da violência que foi causada na vítima, tampouco deixar de atestar que, sim, a legislação é atravessada por relações de poder desiguais não só em termos de gênero, mas também de classe e de raça.
São inúmeros os exemplos que demonstram a existência de penas consideravelmente maiores quanto ao prejuízo de bens materiais em comparação à vida e à dignidade, exatamente porque aqueles que as escreveram detêm esses bens e querem protegê-los. É aí, portanto, que se encontra mais um problema, assim como na própria cultura machista que ainda perpassa os atores sociais do judiciário, recorrentemente punindo mulheres por abortos ou vetando sua ocorrência em casos claramente necessário, relativizando a violência de gênero e encarcerando em massa mulheres flagradas com pequenas quantias de drogas. Assim, há muitos focos — na seara do legislativo e do judiciário — onde é preciso exercer pressão e resistência.
Isso não precisa se confundir, porém, com a negação daquilo que nos resta de mais elementar: garantias e direitos fundamentais, duramente mantidos e sempre em risco (o que podemos ver, por exemplo, no recente manifesto de centenas de promotores, que denunciam o “garantismo”, o simples respeito à leis, como “bandidolatria” e “democídio”). É por estarmos vivendo sob esse contexto que entendo que uma das questões mais assustadoras de todos esses desdobramentos é a crença, cada vez mais compartilhada coletivamente, na punição e em seu endurecimento como solução para as violências sociais (compreensível, diante de um cenário de violações generalizadas, insistentes e com efeitos perversos, ainda que, ao meu ver, ineficaz e muito perigosa).
Por fim, esse caso também pode nos atentar a outro debate, extremamente importante, sobre os benefícios da agregação de um conjunto de condutas diferentes (conjunção carnal, beijo forçado, passada de mão no corpo, etc.) em torno da pecha do estupro — o que não só favorece lacunas como a percebida, como também confunde as próprias estatísticas sobre o estupro e dificulta a criação de políticas públicas mais específicas e eficazes para lidar com o problema. Isso não quer dizer que essas condutas devem ser toleradas, mas que existem diferenças importantes entre todas elas, inclusive do ponto de vista da prevenção e do enfrentamento.
É importante acertar o ponto de partida. E, nesse caso, apesar da pulverização nas redes, ele existe, e são vários. Mas não parece se localizar no Juiz.
Por Marcelli Cipriani
Imagem destacada: detalhe de Judges in Court, de William Hogarth
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