O estupro está a serviço de uma discursividade.
Por que acho que não dá pra separar cultura do estupro, e dentro disso situações onde o estuprador em série está no centro da discussão, e o sistema punitivo.
O estupro é em si uma série, porque ocorre em todos os níveis e todos os dias, ininterruptamente. Se trata de uma situação de responsabilidade de quem comete, mas também do coletivo. É uma forma de submissão, de desumanização, de guerra enquanto instrumento utilizado por homens na expressiva maioria das vezes.
Além da ferramenta perversa em que se constitui, o estupro é uma cultura e, desse modo, está impregnado na sociedade a partir do entendimento de que o outro é objeto, podendo se fazer com o objeto o que se bem entende. Não se chega, na cultura, a um entendimento de desumanização de um por o outro, porque o que sofre a violência não é visto ou percebido como um igual. Afinal de contas o sujeito estuprado é sempre culpado pelo que lhe aconteceu, via de regra. Não é à toa que milhares de mulheres e crianças estupradas não fazem denúncia.
Não se chega, na cultura, a um entendimento de desumanização de um por o outro, porque o que sofre a violência não é visto ou percebido como um igual.
De outro ponto de vista, com a exceção de quem é de classe abastada, que dificilmente será preso por esse tipo de crime; sobre quem estupra e é preso por isso, na cadeia e na sociedade, se faz a leitura de que merece ser estuprado. Ele é culpado. Mas quem não estupra e é preso também tem grandes chances de ser violado, pois esse tipo de ferramenta também serve, nas prisões, como método de estabelecimento do poder. Quem é preso perde sua potência, é submetido a violências de Estado pela situação do cárcere e às violências que estão naturalizadas, inclusive estupro. Nas prisões há os que são considerados sujeitos violáveis e eles tem um papel semelhante ao da mulher para outros homens, mesmo não sendo homossexual. Qual é esse papel? De novo, de objeto.
O estupro está a serviço de uma discursividade. Esta, impõe que homens, para serem considerados viris, precisam ser potentes sexualmente. Essa virilidade está diretamente relacionada com violência. A virilidade se expressa não apenas no ato de estuprar mas também na palavra. Um juiz para desconsiderar um ato de estupro enquanto tal, precisa estar apoiado nesse discursividade, sustenta na palavra jurídica o direito do homem de ser viril, de usar seu corpo como instrumento de dominação.
Um sujeito estupra uma mulher ou uma criança, outro estupra um preso, outro uma travesti, outro uma lésbica. O estupro é sempre uma manifestação de dominação, e se relaciona diretamente com um modelo de masculinidade, ainda que tóxica, mas que predomina.
A virilidade se expressa não apenas no ato de estuprar mas também na palavra.
Então, qual a efetividade de punir uma situação de estupro dentro desses moldes culturais e cíclicos onde as figuras de quem estupra e quem é estuprado se confundem no imaginário social? As cadeias não são um universo paralelo, ainda que atuem com um regimento próprio. Lembremos que o cárcere é formado por uma população massivamente representada por homens, e que seus códigos morais são absolutamente machistas.
Punir é diferente de responsabilizar, diferente de pensar linhas de possíveis reparações. Punir é fácil. Nesse arranjo qualquer juiz que rogue o direito de punir um homem por estuprar é também um criminoso. Mas quem julga juízes senão eles mesmos, baseados em moralidades sociais de proteção do sistema patriarcal? É aí que o bicho pega.
Cabe sempre discutir punições, alternativas ao sistema punitivista, e pensar sociedade é propor. Não é mera abstração. E isso é muito feminista. É revolucionário.
Também importante colocar que os homens precisam entrar nessa discussão, urgentemente. Com a mente aberta pra pensar como estão se relacionando com essa agência cultural.
Por Letícia Campos
Imagem destacada: Ily Magazine
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