Até quando seremos humilhadas na escola?
Esta semana, em Porto Alegre, alunas do tradicional Colégio Anchieta causaram furor na mídia por conta de uma petição (você pode ler manifesto na íntegra e assinar a petição logo mais, abaixo) que fizeram para poderem usar short em sala de aula.
Tocadas com a história, duas colaboradoras da Casa da Mãe Joanna, Bruna Kern Graziuso e Michelle Pinha, compartilham reflexões pessoais acerca de histórias semelhantes, de tolhimento da liberdade individual, e dos padrões duplos de tratamento conferidos a homens e mulheres.
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Até quando seremos humilhadas em um ambiente educacional por nossas roupas?
Por Bruna Kern Graziuso
O caso das adolescentes impedidas de usarem short no colégio Anchieta, em Porto Alegre, me lembrou um episódio traumático da época de escola.
Quando eu tinha mais ou menos 13 anos, tive uma gastrite séria e perdi peso. Eu tinha uma calça jeans que, invés de zíper, tinha botões e uma corda de couro. Nada demais.
Um dia fui chamada na direção. Aparentemente, em decorrência do meu emagrecimento, quando eu sentava, a corda afrouxava um pouco, mas, novamente, NADA DEMAIS. Porém, fui chamada porque alguém denunciou que eu estava “sem calcinha, e estão aparecendo pelos pubianos”.
Sim, SÉRIO. Foram essas as palavras.
Eu estava de calcinha sim. Quem sabe sentada aparecia um pouco a calcinha que eu estava usando, isso presumindo que alguém ficou olhando fixamente e procurando um problema onde não tinha. Eu tinha 13 anos, então imaginem como me senti completamente humilhada. Hoje eu faria um escândalo que, por sinal, foi o que minha mãe fez.
Certamente tinham milhões de colegas meninos usando as famosas bermudas de cintura baixa típicas da época. Nenhum foi chamado na coordenação. Mas eu, vestida com calça comprida, tive que passar por essa situação horrível.
Desde então passaram-se quase 15 anos. Até quando seremos humilhadas em um ambiente educacional por nossas roupas?
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Éramos dois, mas apenas eu fui xingada.
Por Michelle Pinha
Quando eu tinha 15 anos, tive meu 1º namorado. Éramos da mesma sala. Completamente apaixonados! Um dia, no recreio, trocamos uma bitoca dentro da cantina, vejam bem: bitoca-selinho-estalinho. O inspetor viu. A diretora me chamou na sala dela.
Disse que esse meu comportamento era absurdo. Que eu devia me dar o valor. Que estavamos no colégio, com crianças de todas as idades. Que minha mãe não tinha me dado educação, que eu era uma vagabunda por agir daquele jeito.
Minha mãe foi ao colégio. Exigiu que a diretora me pedisse desculpas. Que aquele era um comportamento inadequado partindo da diretoria. Onde já se viu xingar uma aluna? Não interessava se ela estivesse fazendo algo contra as regras do colégio ou não.
Eu pedi pra sair porque, mesmo sabendo que não podia fazer aquilo no colégio, não toleraria ser xingada de vagabunda por dar um selinho no meu namorado. Que a diretora é que era uma louca machista.
Hoje, contando para vocês, reflito sobre o episódio. Porque só eu fui chamada? Éramos dois!!! Mas apenas eu fui xingada. Apenas eu tinha que me dar o respeito. Apenas eu sai do colégio onde estudava desde os 5 anos de idade. Apenas eu me afastei de todos os amigos que conhecia a vida inteira.
Trocar de colégio foi maravilhoso por outros motivos. Expandiu meus horizontes. Mas por eu ser mulher, no auge dos meus 15 anos, eu deveria saber me valorizar e não ceder às tentações adolescentes de beijar meu namorado no colégio.
Esse não foi o 1º preconceito que sofri. Nem o 1º que me lembro. Mas claramente, esse mudou minha vida.
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Leia a transcrição da petição VAI TER SHORTINHO SIM, proposta pelas alunas do Colégio Anchieta de Porto Alegre:
Nós, alunas do ensino fundamental e médio do Colégio Anchieta de Porto Alegre, fazemos uma exigência urgente à direção. Exigimos que a instituição deixe no passado o machismo, a objetificação e sexualização dos corpos das alunas; exigimos que deixe no passado a mentalidade de que cabe às mulheres a prevenção de assédios, abusos e estupros; exigimos que, ao invés de ditar o que as meninas podem vestir, ditem o respeito.
Regras de vestuário reforçam a ideia de que meninas tem que “se cobrir” porque garotos serão garotos; reforçam a ideia de que assediar é da natureza do homem e que é responsabilidade das mulheres evitar esse tipo de humilhação; reforçam a ideia de que as roupas de uma mulher definem seu respeito próprio e seu valor.
Ao invés de humilhar meninas por usar shorts em climas quentes, ensine estudantes e professores homens a não sexualizar partes normais do corpo feminino. Nós somos adolescentes de 13-17 anos de idade. Se você está sexualizando o nosso corpo, você é o problema.
Quando você interrompe a aula de uma menina para forçá-la a mudar de roupa ou mandá-la pra casa por que o short dela é “muito curto”, você está dizendo que garantir que os meninos tenham um ambiente de aprendizagem livre de “distrações” é mais importante do que garantir a educação dela. Ao invés de humilhar meninas pelos seus corpos, ensinem os meninos que elas não são objetos sexuais.
Ao invés de ensinar que a minha decência e o meu valor dependem do comprimento do meu short ou do tamanho do meu decote, ensine aos homens que eu sou a única responsável pela definição da minha decência e do meu valor. Ensine aos homens o respeito, desconstrua o pensamento de que a roupa de uma mulher decreta se ela é ou não merecedora de respeito.
A prioridade do sistema educacional brasileiro, atualmente, é ensinar para (ATÉ AQUI) ENEM e vestibulares, entendemos. Mas a educação social e política não pode ser deixada de lado. É por meio dela que construiremos uma geração melhor que a anterior; é por meio dela que criaremos um mundo onde mulheres não serão julgadas e humilhadas pelas roupas que escolhem vestir, pela forma que tem ou por quantas pessoas já transaram; é por meio dela que acabaremos com a realidade de que, a cada 2 minutos, 5 mulheres são espancadas no Brasil e, a cada 11 minutos, 1 é estuprada; é por meio dela que criaremos um mundo onde cotistas não precisarão ouvir que “roubaram a vaga” de alguém que estudou a vida inteira em colégio particular; um mundo onde mães de crianças negras tenham certeza de que, no fim do dia, seus filhos voltarão pra casa; um mundo onde não perderemos mais vidas para a Guerra Às Drogas; onde mulheres não morrerão em clínicas clandestinas de aborto; onde a religião e a política não se misturarão; onde o capital não será mais importante do que a vida; onde os problemas de hoje serão solucionados.
Nós, alunas do ensino fundamental e médio do Colégio Anchieta, nos recusamos a obedecer a regras que reforçam e perpetuam o machismo, a cultura do estupro e slut shaming.
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