O lugar de escuta

Esses foram alguns dos eventos que frequentei ano passado: Mostra de cinema LGBT; Roda de Conversa sobre Negritude; Grupo sobre Mulheres na Literatura. Os títulos parecem segregar e afastar em um primeiro momento, mas o propósito é justamente o contrário. São espaços que buscam reunir pessoas com os mesmos interesses e inquietações. O curioso é que invariavelmente poucas pessoas heterossexuais, poucos brancos e poucos homens, aparecem nesses locais.

Leio muito sobre o lugar de fala, mas é preciso discutir o lugar de escuta. Como mulher branca, nunca falei em uma roda de conversa sobre negritude. Ouvir as dores da população negra de colegas que frequentam a mesma faculdade que eu e entender o descaso com que nós, brancos, lidamos com o assunto, já basta. Além do aprendizado absurdo, é uma forma mais pessoal e didática de entender sobre esses temas. Não estou lendo um texto na internet, por mais que eu aprenda muito com a Djamila Ribeiro, Stephanie Ribeiro e Winnie Bueno, não se compara com olhar nos olhos e ouvir os relatos pessoais de quem convive comigo.

Não preciso dar minha opinião sobre certos assuntos. Certos lugares talvez sejam os únicos onde populações marginalizadas podem dialogar sobre suas vidas, e me sinto privilegiada em ouvi-los – e, não, eu não quero um biscoito por isso. Minha escuta é o mínimo que posso oferecer.

Enquanto não houverem políticas de reparação e uma educação que discuta essas questões, acredito que seja dever de cada um (que tenha condições, é claro) de ir atrás dessas informações e desse conhecimento e identificar o seu próprio lugar de escuta.

Não sou obrigada a ficar explicando para um cara que ele está sendo machista quando me diz “tu parece um guri de cabelo curto”, ou, ainda, “eu vou te comprar uma gillette”. Eu simplesmente dou as costas. Por que uma pessoa negra teria essa obrigação (e essa paciência) com as pessoas brancas, que, ainda por cima, têm uma vida de facilidades e privilégios incontáveis? Não é justo, nem razoável. É racismo.

O turbante, por exemplo, já havia sido alvo de discussão em um desses encontros, no qual uma menina negra sentiu-se ofendida por uma menina branca se recusar a parar de usá-lo. Afinal, era o direito dela, o Brasil é multicultural e toda aquela ladainha disfarçada de outro nome. Senti vergonha por tamanha ignorância, não no sentido de não ter conhecimento, mas no sentido de ignorar o outro. Foi puro desrespeito e, novamente, racismo. Então, recentemente, quando ouvi conhecidos falando que apropriação cultural é uma bobagem, afinal, somos filhos de índias com europeus e fazemos sushi de brigadeiro, eu fiquei louca. Daí respirei, contei até 58 e argumentei. E sabia como fazer isso.

O mesmo é válido para as espaços sobre gênero e sexualidade. Tudo bem ser hétero e assistir filmes dirigidos por mulheres ou com histórias sobre gays, lésbicas, transexuais e bissexuais, ou, ainda, RuPaul’s Drag Race. Pode ser que tenha um pouco de purpurina nas tuas roupas no final da sessão, mas e daí? Se os teus amigos não sabem lidar com isso, talvez o problema seja eles. Naturalizar comportamentos preconceituosos porque “eles são assim e não tem o que fazer” nos torna coniventes com essa mentalidade. O silêncio e a omissão são tão violentos quanto as próprias ações do agressor.

Mas, afinal, o que posso fazer, além de estar presente no meu lugar de escuta e ocasionalmente bater boca com alguns marmanjos? Sendo classe média em Porto Alegre, os lugares que frequento são majoritariamente brancos. O Rio Grande do Sul tem uma história calcada em valores misóginos, homofóbicos e racistas. São todos muito machos por aqui, é assustador. Sinto que a minha presença com amigos gays e negros, em certos espaços, já é uma forma de resistir, mas infelizmente está longe de ser o suficiente.

Como estudante de jornalismo, faço um recorte de gênero em qualquer pauta, focando em mulheres, quando preciso escrever uma matéria ou gravar um programa de telejornalismo. Até agora sempre encontrei histórias singulares, que passaram anos na penumbra sendo renegadas. São assuntos que parecem brilhar em um mar de obviedades. É um alívio quando percebo que consigo erguê-las, minimamente, para a superfície.

Incomodar a zona de conforto alheia através da escrita tem sido uma das minhas atividades favoritas, admito. E lembro: se for aplaudir esse texto, quando existe uma multidão de mulheres negras escrevendo sobre racismo, é cumplicidade com esse sistema.

Bom dia.

Por Clarissa Cé
Texto originalmente publicado no medium da autora e reproduzido aqui a seu pedido.
Imagem destacada: Business Today

Comments

Comentários