Ser feia dói?

“Luana, ser feia dói?” Com essas palavras o Marcelo* me recebia diariamente durante boa parte da minha infância.

Nunca tive resposta para essa pergunta. Ficava em silêncio. Enquanto ele sorria, se instalava um verdadeiro nó no meu peito. Minhas mãos suavam. Eu só conseguia torcer para que o instante entre a pergunta, o sorriso dele e a minha angústia passassem logo.

Quando me tornei adolescente a pergunta do Marcelo* deu lugar a uma assertiva: “A Luana é feia de rosto, mas bonita de corpo.” Nunca questionei. Nunca respondi. Em silêncio ouvia a discussão em torno da minha “feiura”. Discussão que acontecia ora na sala, ora na mesa durante o almoço. Sempre na minha frente. Sem qualquer constrangimento. Calada, sonhava com o dia em que finalmente me tornaria uma garota inteligente e ninguém mais teria coragem de tecer esse tipo de comentário a meu respeito. Essa seria a minha vingança.

Essas lembranças me vieram à mente após uma jornalista perguntar se o feminismo era importante para o empoderamento das mulheres. Respondi que no meu caso a descoberta do feminismo mudou o meu olhar sobre o mundo. Com ele compreendi a situação de desvantagem das mulheres na sociedade ao longo de toda história e a necessidade de lutar contra isso. Quem me empoderou de fato foi a análise.

Foram três anos intensos no divã para expurgar as mentiras que o Marcelo* e outras pessoas me contaram durante toda a minha vida. Mentiras que tomei como verdadeiras. Bonitas eram as crianças e as mulheres brancas. Assim me foi ensinado na escola, na televisão, nos ambientes que frequentava. Ainda que aquelas palavras me machucassem, na minha cabeça ele tinha razão ao se referir a mim daquela maneira. Talvez por isso jamais tenha conseguido reagir.

Essa é uma das características do racismo no Brasil. Não basta o apartheid social no qual a população negra está inserida. É preciso massacrar, negar a humanidade, inferiorizar, humilhar, ferir de maneira profunda a nossa alma. É uma humilhação cotidiana, que não cessa nunca, ainda que o negro ascenda socialmente, como bem disse o Mestre Milton Santos. O racismo é causador das desigualdades, da violência e também do adoecimento psíquico de mulheres, crianças e homens negros.

Nos debates que participo tenho procurado incentivar mulheres negras a buscar a cura dessas dores que são tão corriqueiras em nossas trajetórias. Dores que muitas vezes nos impedem de avançar, de estabelecer relacionamentos saudáveis, de enxergar verdadeiramente quem somos.

A revolução que tanto almejamos deve ser iniciada por dentro. Só assim teremos forças suficientes para lutar contra as injustiças e as diversas formas de opressão que recaem sobre os nossos ombros. Encontrei a cura na análise, mas acredito que há outros caminhos.

Hoje me sinto muito feliz, pois a voz do Marcelo* já não me perturba. Olho no espelho e gosto do que vejo. Gosto do meu sorriso com aparelho, da minha pertença racial, das linhas de expressão que se formam embaixo dos meus olhos cada vez que eu sorrio, das minhas mãos alongadas que são iguais as do meu pai, das minhas pernas torneadas pela corrida. Gosto mais ainda de não sentir dor, nem medo. Finalmente estou livre. Empoderada.

Me sinto feliz também por poder partilhar essa história. De mostrar que a maioria dos complexos que carregamos foram introjetados em nossas mentes por uma sociedade injusta e racista como a brasileira. Escrevo na certeza de que outras mulheres também podem fazer essa travessia. Na medida do possível, estarei sempre aqui para apoiá-las. Merecemos uma outra vida. Leve. Feliz. Sem racismo, sem discriminações, sem violências. Juntas podemos conseguir.

Por Luana Tolentino
Imagem destacada: detalhe de The Pieces of Me, por Mikéla Henry-Lowe

* Marcelo: nome fictício

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