Construções sociais da linguagem

Uma das grandes dificuldades que a mulher enfrenta ao denunciar violência e atos machistas perante organismos legais – delegacias, tribunais, etc – reside não só no fato de que esses organismos e instituições sejam perpassados pela lógica machista e pelos mais diversos preconceitos socio-culturais que deveriam combater, ou pelo fato de que a maioria dos cargos seja ocupada por homens, é que também a própria linguagem que define o sujeito autônomo moderno com o qual o direito opera está estruturada numa lógica patriarcal e em seus modos de tradução verbal específicos.

Daí advém uma assimetria de linguagem fundamental para se pensar numa perspectiva feminista os fundamentos místicos da autoridade, pensados em outras circunstâncias por Derrida, mas considerar essa assimetria constitutiva importa também para entender certas dinâmicas das manifestações hoje, dentro e fora das redes sociais enquanto mobilizadoras de um tipo de denúncia coletiva que viria tentar corrigir a impotência da palavra das mulheres quando proferida de forma isolada perante a Lei.

As construções sociais da linguagem cujos princípios legitimadores são esguios esquivos e muito difíceis de localizar incidem nos modos de recepção das falas que tratam de dar conta de violências sofridas. O filme A paixão de Joana D’Arc de Carl Theodor Dreyer é de certo modo uma longa e dramática reflexão sobre essa assimetria brutal de linguagens e a farsa jurídica que ela produz. Ainda que hoje o caráter “natural” das agressões vividas pela mulher na sociedade tenha sido questionada e desconstruída, a assinação de lugares e comportamentos naturais à atuação feminina são ainda extremamente enraizados no imaginário social.

O filme A paixão de Joana D’Arc é uma reflexão sobre a assimetria brutal de linguagens e a farsa jurídica que ela produz.

Quando o demente e anacrônico Michel Temer fala sobre a mulher numa perspectiva conservadora, circunscrevendo-a ao espaço doméstico, não está apenas confirmando a virulência misógina e a hierarquia patriarcal que faz questão de cultuar mas exibe aí também uma concepção político-jurídica que contribui para a manutenção dessas assimetrias tanto no nível da linguagem quanto no das práticas jurídicas. Impressiona ainda na indigência intelectual do seu pronunciamento que ele não seja sequer capaz de fazer uma distinção entre a mulher abstrata e generalizada e idealizada segundo critérios os mais retrógrados e a mulher como “outro” concreto, a mulher brasileira, a negra, pobre e solteira que trabalha fora, cria filhos, banca uma família inteira e se defende diariamente da violência psíquica e física a qual é exposta.

O grande perigo de falas idiotas como as de Michel Temer é que têm um poder ressonância enorme, e não importa que a mulher ali delineada exista apenas na cabeça demente de um político porque na hierarquia das linguagens institucionais prevalece essa mesma ideia e projeto de mulher que torna inaudível a denúncia e a crítica de uma perspectiva feminista, porque a mulher real, para o sistema, ainda não existe. E ainda mais triste e preocupante, infelizmente ela ainda não existe também na percepção e articulação de discurso de muitos intelectuais “sensíveis”, para muitos deles, quando uma mulher é também uma intelectual, é porque de certo modo ela conseguiu se tornar um homem.

Por Laura Erber
Imagem: still do filme A Paixão de Joana d’Arc

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