Diálogos feministas e a carteira de nome social
Sobre feminismos, carteira de nome social, e mais umas coisas:
O feminismo tem um campo político, derivado do fato de o movimento ter se constituído, historicamente, como um entrelaçado entre teoria e prática. Nesse campo, se percebem e se articulam demandas materiais das diferentes mulheres, apontando-se a dominação de gênero como responsável por desigualdades e por violências efetivamente percebidas nas vidas femininas como um todo.
O feminismo também tem um campo teórico-epistemológico, que tenta pensar o sujeito de conhecimento dentro de seu contexto, refletindo sobre o fato de que este, assim como a própria verdade, possui uma história (construída por fatos discursivos em eterno combate). Há nele, dentre outras perspectivas, o pós-estruturalismo, que abandonou a explicação universal da história (como propunha o iluminismo e marxismo, por exemplo) e a noção de que há um único modelo a ser seguido, radicalizando as teorias estruturalistas. Aqui, há a denúncia às “regras do jogo” que, decorrendo de verdades produzidas em diferentes lugares da sociedade, criam subjetividades e certos tipos de saber (que se manifestam como instrumentos de poder).
O feminismo ainda pode ser analisado pelas chamadas “ondas”, que caracterizam demandas próprias às mulheres de cada época e de cada lugar do mundo (o que influiu, por exemplo, as diferenças entre pautas de feministas francesas e estadunidenses nos anos 60-70, em torno da demanda por igualdade X da afirmação da diferença). A partir das possibilidades existentes e das necessidades políticas, tais ondas se constituíram na realidade social. Como não se tratam de processos universais, tampouco superados (ainda há países em que mulheres não podem votar e, por outro lado, no Brasil o aborto é criminalizado — para citar um exemplo), elas se sobrepõem. São como ondas: vão e voltam.
As diferentes expressões do feminismo (sempre teórico-prático), portanto, estão frequentemente se auto-problematizando, formulando novas maneiras de se organizar em forma de movimento e exercendo a militância através de rupturas e alianças, de variadas estratégias, mecanismos de resistência e olhares coletivos. Feminismo marxista, radical, anarquista, liberal. Feminismo negro, interseccional, transfeminismo….
O feminismo são feminismos, e sua multiplicidade é percebida em todas as suas (já) várias inúmeras dimensões. Assim, as pautas de mulheres transexuais e de travestis e os transfeminismos não se equivalem à teoria queer, tampouco se confundem com a maneira como essa teoria é lida, interpretada, e aplicada pelos indivíduos.
Não culpem as mulheres trans por demandaram ter direito a ser o que são, como vêm sendo e existindo há séculos, sempre em contextos de não-existência.
Para falar em pautas: em 2011, aqui no estado, o então governador assinou o Decreto 48.118, que garantia tratamento nominal adequado nos registros estaduais de serviços públicos do Executivo do Rio Grande do Sul. Por exemplo: uma mulher trans que trabalhasse ou acessasse um prédio público da segurança, poderia usar crachá com nome de sua escolha, evitando-se constrangimentos e violências simbólicas a pessoas transgênero. Mais tarde, criou-se a carteira de nome social, para materializar o direito ao nome e à identidade em outros âmbitos do (e apenas do) executivo: postos de saúde, hospitais e escolas públicas, por exemplo.
A demanda foi fruto do movimento social de travestis e transexuais, que tradicionalmente vem assumindo posição marginalizada dentro das preocupações institucionais e do próprio movimento LGBT, com as pautas estatais e as políticas públicas sendo quase nunca voltadas para o índice alarmante de travestis em condição de vulnerabilidade e de sua cooptação reiterada pelos sistemas penal e de segurança pública. A precariedade da vida de travestis e de transexuais, apesar de ser histórica (só a Igualdade-RS surgiu faz quase duas décadas, após mulheres trans e travestis, diante do silenciamento do Estado e da invisibilização da sociedade, se organizarem para prestar diferentes formas de auxílio — desde a prevenção da AIDS até a ajuda em situações de violência), recebeu um mínimo de atenção só nos últimos anos.
Em 2012, como resultado da pressão do movimento social de defesa de travestis e de transexuais, assim como de detentas alocadas no Presídio Central de Porto Alegre, foi criada a 3a do H, Galeria número 3 do pavilhão H, na qual passariam a viver as travestis presas (em sua maioria por tráfico de drogas ou por pequenos roubos) no estabelecimento. A medida também resultou do contexto crítico de violência no qual as travestis viviam anteriormente: eram colocadas nos mesmos espaços que os chamados “duques” (presos por violência sexual), bem como eram frequentemente estupradas, agredidas fisicamente, moralmente e psicologicamente por outros apenados e mesmo por policiais militares, que raspavam seus cabelos e lhes vetavam roupas femininas.
Ainda que a carteira de nome social e a ala específica tenham sido avanços consideráveis dentro de uma história recente de completa negação de existência e de cidadania, os mecanismos também têm vários problemas: a carteira não é aceita em qualquer espaço, mas só naqueles vinculados ao poder executivo estatal — e, mesmo onde deveria ser acatada, muitas vezes não o é. Ademais, impõe que a mulher trans apresente, para o uso, seu documento de identidade, porque ainda que haja RG na carteira de nome social e que ela seja produzida pelo Instituto Geral de Perícias, é preciso confirmar qual é a “verdadeira” identidade da mulher trans outravesti. Assim, promove violência simbólica tratando a identidade trans como “fictícia” ou “informal”, e faz com que mulheres trans tenham que negar quem são para exigir ser tradadas pelo nome que faz parte da construção do que efetivamente são.
A ala do presídio, por outro lado, dá proteção diante das violências de outros apenados, mas exclui as detentas: elas não têm acesso aos espaços comuns, tampouco podem estudar ou trabalhar. Disso, diferentemente dos outros apenados, as travestis não podem remir sua pena (diminuir o tempo de cumprimento através do trabalho ou estudo).
As travestis seguem sendo presas em condições de precariedade de classe, não raro imersas em um contexto de abandono familiar, de expulsão escolar, de marginalização e de coação à prostituição. Também seguem sendo exotizadas como seres míticos que só podem fazer-se ver e ser vistas à distância, em esquinas escuras e no segredo da madrugada. Ainda, permanecem sendo assassinadas pelo ódio alheio e pela intolerância de uma sociedade que sempre lhes tratou como escória, como seres abjetos.
Nenhuma das violências decorrentes da transfobia generalizada implicam deixar de considerar, reconhecer e efetivamente combater a violência patriarcal que vem, desde que a história é história, assumindo diferentes formas de exercer domínio e controle sobre as mulheres. Isso se dá porque a opressão não se expressa apenas de uma maneira ou se volta a apenas um sentido. A estrutura patriarcal existe e tem assumido sentido de meta-narrativa, mas qualquer estrutura possui rachaduras, na medida em que a sociedade é muito mais complexa do que uma relação uníssona e pontualmente direcionada. Há feixes hegemônicos de dominação que partem de lugares sociais diferentes, que assumem manifestações diferentes, que funcionam violentando e oprimindo nas fronteiras da norma – dentro e fora dela.
A ignorância, a falta de empatia e a simplificação dos fenômenos sociais produz mais ódio e intolerância, mesmo colocando pessoas que deveriam estar produzindo resistências conjuntas, como inimigas. Não culpem as mulheres trans por demandaram ter direito a ser o que são, como vêm sendo e existindo há séculos, sempre em contextos de não-existência. Mulheres podem violentar e segregar outras mulheres sim, e é isso que nós fazemos quando culpamos mulheres trans seja lá por que tipo de mau caratismo alheio, de opressão masculina cisgênera, de má interpretação teórica e desonestidade intelectual ou de confusão na compreensão entre os diferentes campos dos feminismos.
Por Marcelli Cipriani
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