Padrões e prisões estéticas
Dia desses zapeando de canal, meu marido viu a Alicia Keys como jurada em um programa de calouros e ficou estático, tentando puxar em sua memória o nome dela. Sabia que tratava-se de uma celebridade que ele reconhecia, mas não conseguia fazer o link completo.
— Quem é ela mesmo amor? Quando eu disse quem era, sua reação foi de espanto: — Nossa! Mas o que aconteceu? Ela está tão diferente.
Como eu sabia de todo o contexto, expliquei: Ela não queria mais se sentir aprisionada à ditadura da beleza e decidiu não se maquiar mais. Contou que todas as vezes em que saía de casa ficava preocupada por não ter se maquiado. “E se alguém quiser uma foto? E se postassem essa foto? Não quero me esconder mais, nem me submeter a isso.” disse ela em uma carta à imprensa.
A reação do marido (exemplo de homem desconstruidão) foi uma surpresa pra mim:
— Mas que exagero! Pra que tanta radicalidade?
Mudamos de canal e de assunto. Só que a reação dele reverberou em mim e me fez pensar no assunto durante dias a fio.
Ruminei bastante sobre o motivo da reação dele ter me afetado tanto. Justo eu que me sinto horrível de cara lavada, que adoro uma boa maquiagem, que sou assumidamente refém dos protetores solares tonalizantes (que me dão a falsa sensação de que faço uso deles por uma questão de saúde, mas honestamente o objetivo principal é esconder as imperfeições do meu rosto cheio de manchas) sentia o sangue ferver enquanto pensava no que havia acontecido. Meu marido compactuava com aquilo.
Dias depois, eu trouxe o assunto à tona novamente. Cheia de novos argumentos e com um discurso mais elaborado sobre o ato político implícito na decisão dela (afinal, “O pessoal é político”) e sobre o potencial de impactar positivamente tantas adolescentes que são incentivadas a todo momento a perseguir a qualquer custo, encaixar-se aos padrões.
Conversamos durante horas pois eu estava determinada a fazê-lo compreender que era sintomática a sua reação sobre a decisão que uma mulher teve sobre algo que ela tem ingerência máxima: seu próprio corpo. Achar radical a ideia de uma mulher escolher não se maquiar, era um sinal vermelho importante. Queria conseguir explicar que mesmo sendo simpáticos a ideais libertários, tanto ele quanto eu, não estávamos imunes a essa lógica maluca.
Achar radical a ideia de uma mulher escolher não se maquiar, era um sinal vermelho importante.
Depois de reconhecer como esse assunto me afetou, gastei um certo tempo pensando e lendo a respeito. Entendi que nós mulheres aprendemos desde muito cedo que o que somos não é suficiente e deve ser trabalhado com afinco para ser melhorado. Com 14 anos aprendi que para ser “uma mocinha” era preciso retirar as cutículas das mãos e dos pés, pintar as unhas, modelar minhas sobrancelhas, retirar a penugem do rosto com cera quente, depilar também as pernas, virilha e axilas e descolorir os pêlos dos braços. Era preciso usar brincos, um batom suave e ter cabelos compridos. Uma verdadeira maratona pra alguém recém saída da infância.
É incrível o bem-estar que é proporcionado a nós quando nos rendemos a todos esses rituais. Corresponder ao que esperam da gente traz muito conforto, parece até libertador. Estranhamente algumas mulheres chamam isso de empoderamento.
Foi criado um papel social para as mulheres e nos ensinaram a desejar cumpri-lo: a de mulher-adorno, capaz de enfeitar ambientes com a sua presença e com o seu jeito de ser. É definitivamente um posto a ser conquistado e reconhecido.
Isso faz parte da construção social da feminilidade que determina todas as características que a mulher deve ter para ser uma boa mulher: ser bela, doce, frágil, gentil, acolhedora e delicada. Atributos estes que servem em resumo, de contraste para reafirmar e valorizar tudo que se espera da posição social atribuída ao homem: virilidade e masculinidade.
Durante séculos um acordo muito específico era selado no momento do matrimônio: homens eram responsáveis pelo sustento financeiro de suas famílias enquanto as mulheres deviam satisfazer as necessidades sexuais de seus parceiros. Hoje, mesmo diante de todos os avanços e conquistas das mulheres, um dos resquícios dessa antiga visão foi a objetificação do corpo feminino. Essa objetificação faz com que haja uma redução simbólica do que representa a mulher, ou seja, sua aparência importa mais do que todos os outros aspectos que podem ser utilizados para definir um ser enquanto indivíduo.
A objetificação dos nossos corpos é perigosa por reforçar a crença generalizada de que nosso maior capital é o nosso próprio corpo. Minimizar o valor com base nas aparências faz com que mulheres não se entendam como indivíduos completos, que possuem valores, múltiplas possibilidades e diversas capacidades.
Dentro do conceito de feminilidade o quesito mais opressivo talvez seja o da “ditadura” da beleza. É um ideal que nos desumaniza num nível muito profundo, pois trabalha justamente para nos fazer sentir desencaixadas e imperfeitas, desejando consumir produtos que prometem nos fazer caber dentro do padrão considerado minimamente aceitável.
Empoderador de verdade seria se a gente pudesse nos amar e aceitar quem a gente é sem tantos apetrechos, cosméticos e artifícios.
Infelizmente minha autoestima ainda é um muro que impede meu desprendimento do consumo de cosméticos, dos rituais macabros de depilação com linha/cera quente, e da vontade de me sentir bonita. Mas admito que fecho meus punhos em sinal de luta quando vejo uma mulher que peita esse sistema todo.
Precisamos de mais e mais Alicias Keys! Por mais mulheres que nos façam repensar esses padrões. E, mesmo que seja muito difícil mudá-los, que haja ao menos lucidez e consciência nesse processo.
Por Raquel de Souza
Originalmente publicado no medium da autora, de onde também vem a imagem destacada
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