Greve internacional das mulheres, luzes da Esplanada e o discurso do chefe de Estado
Uma greve internacional das mulheres foi decretada para o dia 08 de março de 2017. Em pelo menos 50 países mulheres atenderam a convocação dessa greve, e nomes importantes como Angela Davis e Nancy Fraser assinavam o manifesto convocatório propondo a paralisação das mulheres como forma de ampliar a visibilidade da luta feminista com ênfase na questão de classe.
O Brasil foi um dos países que aceitou fazer parte desse movimento, e como cada Estado tem sua forma própria de manifestar sexismo e machismo – no nosso país, por exemplo, tivemos a destituição de uma presidenta legítima e democraticamente eleita, por quereres políticos e econômicos que tranversalizam a questão de gênero, e a grande aversão que se tem de mulheres na vida política estatal – tivemos nossa pauta específica que perpassava a falta de valorização do trabalho das mulheres: a falta de reconhecimento do trabalho doméstico, a falta de reconhecimento da jornada dupla e/ou tripla, os salários mais baixos e os impedimentos de prosperar na carreira quando comparadas aos homens, os impactos negativos diretos que as mulheres terão com as mudanças na previdência social, dentre tantas outras reivindicações que ultrapassam o aspecto trabalhista, mas também o envolve.
Sem dúvida alguma o maior número de mulheres marchando foi no Rio de Janeiro, com dezenas de milhares de mulheres reunidas: foram coletivos, organizações de mulheres diversas, mulheres universitárias e um número grande de mulheres que arcaram seu dia de greve: ponto cortado, filhos a tiracolo, ida depois do serviço, muitas possibilidades que eu não saberia dizer, mas é importante pontuar que fomos nós por nós, isso porque praticamente nenhum sindicato trabalhista bancou ou apoiou efetivamente a greve internacional de mulheres.
Isso aconteceu em mais 55 municípios, dentre os quais estava Brasília, mas por aqui não chegamos a nem uma dezena de milhar completa de mulheres reunidas, o que não impediu que os preparativos e a marcha tenham sido lindos e empoderadores também. Igual a todas as outras cidades, os sindicatos trabalhistas locais se importaram pouco com as mulheres que representam, mas tenho amigas que mataram no peito suas faltas e que estavam por lá, orgulhosas por fazerem parte da marcha – uma pena que em número menor, o que atribuo à quantidade de servidoras públicas que mantêm o mínimo de equidade entre gêneros, já que seu salário é igual ao dos homens, mas problematizo as possibilidades de prosperidade no serviço público, que elas não conseguem responder muito bem – mas isso fica para outro texto. Acontece que aqui foi possível ver um fenômeno simbólico muito importante e grave para as de nós que o notaram.
A Esplanada e a Catedral começaram, dizem por aí que por coincidência, no dia 03 de março, a serem iluminadas na cor azul para conscientizar a crise hídrica pela qual passa Brasília. Eu sou adepta da leitura da desconfiança, então desconfio dessa coincidência, isso porque no dia 08 de março, metade do Congresso Nacional estava iluminada de rosa, a despeito do movimento que adotou lilás e roxo para o dia, e outra metade estava azul, toda Esplanada e a Catedral também estavam de azul. Estamos longe de implicar com cores, mas nosso governo atual não, e embora não soubéssemos ainda do fatídico discurso, já vimos explicitamente a mensagem simbólica daquelas luzes. Rosa para mulher e azul para homem.
Não vou me ater ao debate de azul simbolizando masculinidade e rosa simbolizando feminilidade porque ele é muito velho, e a energia que quero gastar é para outra coisa: se podem colocar tudo de rosa durante um mês para conscientizar as mulheres da importância da prevenção do câncer de mama e do colo do útero, porque não se poderia colocar um dia de todas as luzes roxas, ou rosa mesmo?! Por que só uma pequena parcela do Congresso estava de rosa?! Por que não estava ao menos todo o Congresso?! Por que a quantidade de azul na área central de Brasília estava sufocando aquela metade rosa?! Eu tenho meus questionamentos e também minhas teorias que acabaram se fortalecendo quando em casa dou de cara com o discurso e graças à deusa, com as críticas ao discurso do então chefe do executivo que temos.
O discurso de Temer reduziu a importância das mulheres aos cuidados, mas vejam bem, ele poderia falar até de profissionais liberais cujas responsabilidades remetem ao cuidado do outro como enfermeiras, professoras, cuidadoras de idosos, nutricionistas, etc., mas o senhor Michel Temer e toda sua assessoria optou por mandar um recado direto às mulheres, e nem vou dizer que foi para mim, porque no discurso dele fica fácil saber que eu não sou uma mulher, o discurso dele foi endereçado para mulheres brancas, casadas e que trabalham com atividades domésticas. Dentre outras coisas ele pontou a importância da mulher estar em casa cuidando de coisas que eu nem sei se sua esposa cuida, como o astuto trabalho de conferir os preços de produtos no supermercado, ou a dedicação aos cuidados da prole.
Certamente esse discurso exclui mulheres não casadas, mulheres negras que trabalham desde que chegaram nessas terras trabalham pesado e fora de suas casas para sobreviverem e movimentarem a economia deste país. E muita gente achando que o discurso foi falta de noção.
Não, não foi. Não se enganem, o discurso dele invisibiliza minha amiga psicóloga que cansou de esperar a pensão do ex companheiro e decidiu ir à luta até conseguir seu próprio consultório e sustentar a si e a sua filha sem a ajuda de ninguém; apaga a vida da minha mãe que teve que trabalhar de cozinheira, telefonista, empregada doméstica e não podia estar dentro de casa cuidando da minha educação porque o tal marido não estava ao lado; suprime a experiência de mulheres que mesmo casadas conseguiram o milagre de encontrar neste mundo machista, parceiros que sabem o quanto a relação a dois é feita por dois e ambos precisam trabalhar dentro de casa também, inclusive fazendo as compras e monitorando os preços.
Nos tempos antigos do que o Ocidente utiliza como parâmetros norteadores, muita gente não era considerada gente, e até algumas poucas décadas atrás, aqui mesmo no Brasil, nem toda/o brasileira/o era considerada/o cidadã/o.
Então juntar a potência da organização internacional de mulheres, com o espaço que o governo destinou reconhecer simbolicamente com a pequena luz rosa no mundo de luzes azuis da capital política do país e o discurso deliberadamente classista e, no mínimo, sexista, do homem que poucos acharam que deveria estar no comando do executivo brasileiro, nos mostra a quem serve toda essa construção, quem são os sujeitos a quem tudo isso se destina como fortificação e os recados ameaçadoramente retrógrados endereçados a nós, com nome e endereço completos.
Quero dizer que nós, aqui em Brasília entendemos muito bem qual foi a mensagem que o Estado brasileiro machista, sexista e com pitadas de misoginia nos passou, mas isso não quer dizer que iremos esmorecer, porque já sabemos como funciona a lógica masculina de ameaças veladas e não ditos pesadamente opressores. Talvez a surdez deliberada desse poder hegemônico é que não esteja entendendo a nossa contraproposta, e eu acredito que esse pode ser o ponto da decadência dessa estrutura que não serve mais para nada, a não ser virar motivo de chacota internacional.
Por Adélia Mathias – doutoranda em literatura brasileira, com ênfase na literatura afro-brasileira contemporânea escrita por mulheres. Mulher negra, filha de mãe solo, feminista e pesquisadora de relações de raça e gênero. Este texto também foi publicado na página 8M Brasil, de onde tiramos a imagem destacada.
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