Feud e a solidão em ser mulher
Muitas profissões são cruéis com as mulheres, mas uma delas cria padrões que serão massificados por todo mundo: a dramaturgia. Nesse mercado se começa cedo. Algumas mulheres iniciam antes mesmo dos 18 anos tendo, assim que possível, seus corpos hipersexualizados. E, como em toda profissão, há aquelas que se destacam. Nessa, pela beleza e/ou profissionalismo.
Feud — Bette and Joan, conta a história da conturbada relação entre Joan Crawford e Bette Davis, atrizes dos anos dourados de Hollywood. Os papéis são representados por Jessica Lange e Susan Sarandon, respectivamente. A série se passa principalmente na década de 60, período em que a dupla filmou “O que terá acontecido com baby Jane?”.
Quando se pensa em uma relação cheia de percalços entre duas mulheres, não é difícil de se imaginar haver um homem envolvido. Mas por pior que possa parecer, não foi apenas um que separou essas duas brilhantes atrizes. Foi Hollywood, em si.
Mas antes de entramos nos problemas, precisamos passar por outras questões. No cinema dos anos 60 não havia espaço para atrizes com mais idade. Dentro da profissão, todas sabiam que possuíam um “prazo de validade”, pois personagens não eram escritas para esse perfil.
Na época, as duas atrizes tinham 50 anos e lutavam para conseguir espaço no cinema. Segundo a série, Davis participava de alguns programas de TV e de teatro na Broadway, para conseguir se manter. Porém, esse afastamento do cinema não era bem visto por seus colegas, especialmente Crawford. Eis que surge uma oportunidade para fazer um filme categorizado como cinema B — ou seja, com menor investimento, o que interferia na qualidade do resultado. Só que para fazer esse filme, as duas atrizes teriam que pela primeira vez na vida trabalhar juntas. O motivo superficial desse ódio compartilhado era, segundo Joan, por causa de um namorado “roubado” por Bette. Mas é vendo as conversas entre o diretor do filme — Robert Aldrich e o responsável pela produtora — Jack Warner, fundador da Warner Bros. — que tudo fica claro.
Como se faz para um filme ter sucesso?
Através de divulgação.
E qual a melhor forma de se fazer propaganda “de graça”?
Com fofoca de bastidores.
A Warner Bros. iria, pela primeira vez, distribuir um filme massivamente em 400 cinemas dos EUA. Para isso, eles precisavam vender. Foi, então, que Jack teve a melhor ideia do mundo: fazer as duas atrizes brigarem, gerando o burburinho que precisava para todos falarem sobre baby Jane. Robert não parecia muito feliz com a ideia, mas foi convencido de que essa era a única forma de fazer o filme ser um sucesso. Ele bem sabia da relação difícil entre as atrizes, mas pelo bem do seu trabalho, que mal poderia fazer colocar duas mulheres uma contra a outra?
Evidentemente, muito mal. Conforme as fofocas vão tomando proporções maiores é visível o quanto essas notícias machucavam as atrizes, mesmo elas já tendo que lidar com rumores e mentiras para gerar mídia há anos.
Imagine a situação. Você é muito boa no seu trabalho, mas não tem nenhuma oportunidade por causa da sua idade. Quando surge uma, sente que deve dar o máximo para aquilo funcionar. Mas ai, criam um ambiente de rivalidade entre tu e uma colega que poderia muito bem ser uma amiga.
E elas tinham muito potencial para se darem bem. É muito lindo ver a tentativa de Bette para que as duas se aproximem, convidando-a para sair beber depois do trabalho — outro grande problema dentro desse mercado, o alcoolismo. As duas são mães, solteiras, estão no cinema há anos. Conversando em um bar fica claro o quanto poderiam conquistar juntas. Em como suas histórias tem pontos em comum e suas opiniões com relação ao trabalho são parecidas.
Mas não é nada disso que acontece. A desconfiança já estava instaurada e a insegurança compartilhada por duas mulheres desvalorizadas nas suas profissões é muito dolorida. Elas ainda poderiam se unir na dor, mas o orgulho e a competição em que sempre viveram já é algo internalizado.
Muitas pessoas ganharam e continuam ganhando dinheiro através do ódio entre mulheres. Só na série fica claro que a produtora, o diretor e jornalistas especialistas em fofocas foram os mais beneficiados por toda essa dor.
Uma cena muito interessante acontece em uma das conversas entre Jack e Robert. O primeiro, que não usa meias palavras, afirma que a única forma de se lidar com duas mulheres de personalidades fortes é fazendo com que elas briguem entre si. Dessa forma, o trabalho do diretor se torna muito mais fácil, pois ele pode se focar em ser o ombro amigo e não alguém que precisa lidar com a opinião de duas forças femininas.
O filme vendeu muito bem. Duas pessoas foram oprimidas, humilhadas e desrespeitadas no processo para que isso acontecesse. Além disso, Joan e Bette perceberam que nunca poderiam confiar em outra mulher. Que todas são uma ameaça, especialmente as mais jovens.
Quando Bette é indicada ao Oscar de melhor atriz fica ainda mais aguda essa rivalidade. E que ela não era destinada a ser “apenas” uma mulher. Joan expande seu rancor para todas as concorrentes. Em suas conversas, logo após um elogio vinha um comentário do tipo: “aproveite sua idade porque em seguida tudo começa a cair”.
Joan não conseguia olhar para outra mulher e ver uma pessoa. Só enxergava uma concorrente. Isso é o que Hollywood fez e faz com muitas até hoje. Onde o melhor papel vai para quem estiver mais disposta a perder sua identidade pela fama. Essa é a construção necessária para sobreviver no meio, palavra que as duas protagonistas falam algumas vezes.
“Eu criei Joan Crawford para as pessoas e passei muitos anos sendo ela. Quando estou sozinha não sei mais quem sou.”
Bette com sua personalidade forte e piadas áridas, sempre que podia colocava em pauta o sexismo do cinema. “Se Marlon Brando estivesse no meu lugar você não estaria discutindo comigo”. Ela fala sobre a competitividade em que o meio coloca as mulheres, sobre a devoção à beleza construída, e que exige uma vida para manter.
Aos 22 anos, em uma audição com Jack Warner, ela lembra da pergunta que o fez decidir se ela tinha potencial para um papel: “Quem gostaria de transar com aquilo?” e a resposta — “ Você tem zero sex appeal”. Durante a série fica óbvio que a escolha das estrelas do filme foi baseada em beleza por Joan e profissionalismo por Bette. Uma dupla difícil de manter por perto mas astronômica nas telas dos cinemas. Em uma conversa emocionada entre Joan e Bette elas trazem a luta para ser perfeita em Hollywood e nunca conseguir:
“Joan, como era ser a mulher mais bonita do mundo?
Era glorioso. E nunca o bastante.
Bette, como era ser a melhor atriz de todas?
Era ótimo. E nunca o bastante.”
Sororidade passa longe em um universo onde o mais importante é se manter jovem, bonita e dentro de um padrão determinado por um homem, branco e que no final, sempre ganha mais dinheiro do que as atrizes. E não pense você que, por não fazer parte desse mundo de glamour estará protegida de tudo isso. Essa mídia que dissemina a competição entre mulheres está todos os dias batendo nas nossas portas tentando nos convencer a seguir por esse caminho.
Afinal, como bem disse Joan, só pode existir uma rainha, e enquanto ela se mata lentamente para chegar nesse lugar que tanto lutou para alcançar, não se dá conta de como a caminhada é solitária. Não confiar em outras mulheres não fala só sobre com quem tu anda, mas sim sobre quem tu é. Se tu não consegue ter empatia por alguém que, em alguns casos, tem problemas muito parecidos com os teus, talvez tu também não esteja se ouvindo.
O final dessa história não é de uma amizade linda. Mas ela nos faz perceber mais uma vez, que as nossas escolhas diárias estão determinando o futuro. E que nós precisamos escolher o que continuaremos reproduzindo e quais lutas queremos doar a nossa energia. A minha vou continuar dedicando a ouvir outras mulheres, compartilhando dores e alegrias, pois esses momento com pessoas que sentem parecido contigo são muito valiosos. Espero que tu tenha alguém para conversar, pois não há nada melhor no mundo do que uma amiga mulher. ❤
Por Gabriela Teló, originalmente publicado no medium da autora; versão editada reproduzida aqui com sua autorização.
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