Militância, protagonistas e coadjuvantes
Quero começar dizendo que heterossexuais devem falar sobre homossexualidade. Não apenas falar, devem poder questionar também. Não estou discutindo como uma pesquisa acadêmica deve ser conduzida, mas como temos convivido com o senso comum.
Embora alguns grupos acreditem que eles estariam abordando uma realidade que não os compete, eu vejo de outra forma. Ninguém existe isoladamente. Nos colocamos no mundo sempre em relação a um outro alguém, fazendo com que nossas experiências sejam sempre coletivas. Ainda que a gente tente fazer a discussão acontecer apenas entre os que vivenciam, o debate sobre a homossexualidade nunca será unilateral, pois estaríamos falando também daqueles que se impõem sobre nós.
É por isso que o protagonismo perde seu sentido sem os coadjuvantes, pois um precisa do outro para ter lógica. Na verdade, se a ideia do protagonismo for levada ao pé da letra, ninguém realmente poderá falar por ninguém, uma vez que nossas experiências são únicas e singulares. Esse ponto me preocupa, ele presume que lutaremos apenas pelo que nos afeta diretamente, desconsiderando outras formas de se comover sem precisar viver aquilo na pele. Se não há como despertar empatia e assumimos que é impossível sensibilizar através de outros meios, por que continuamos contando nossa história? Contraditório.
Nesse sentido, duas únicas alternativas são apresentadas aos considerados opressores. Concordar ou se calar. Afinal, de qual mudança estamos falando aqui? Uma que deve ser bastante rasa e superficial, pois é isso que tal ativismo provoca. Se não é permitido falar, duvidar e expor a própria opinião, qual é o nível de transformação que propomos? De verdade, esse é um questionamento que tem me mobilizado ultimamente.
Existe um poder transformador no diálogo, no acolhimento, na disputa, mas não vejo o mesmo efeito quando exigimos silêncio.
Existe um poder transformador no diálogo, no acolhimento, na disputa, mas não vejo o mesmo efeito quando exigimos silêncio. Não dar pitaco é somente um dos exemplos. No entanto, que se calem e não participem é exatamente aquilo que a sociedade sempre esperou dessas pessoas. Heterossexuais devem ocupar um lugar nas nossas discussões, cabendo a nós distinguir quando sufocam de quando ecoam nossas propostas. Às vezes, um pouco de tato é aquilo que diferencia o avanço da estagnação.
Barrar que outros participem desse processo, devido a uma característica que carregam, também impede que nossos objetivos ganhem força. Partindo do pressuposto que a ideia é conscientizar, qual é o motivo para manter tanta informação restrita a um grupo minoritário de pessoas? De que adianta falar em círculos, somente para quem já concorda com aquilo que acabamos de dizer? Funciona muito mais discutir abertamente, permitindo que o aprendizado flua de maneira horizontal. Essa é uma mudança profunda, pois reconhece a atuação do sujeito, seu tempo e sua capacidade.
Precisamos dar conta da incerteza, ampliar nossas verdades.
Rever uma história de vida que foi construída para subjugar os outros não é tão fácil quanto trocar de roupa, ainda mais quando não é permitido raciocinar durante esse percurso. Precisamos dar conta da incerteza, ampliar nossas verdades. Caso contrário, não serão genuinamente afetados pelas reflexões que trazemos. A aprendizagem é um caminho que envolve trocas, divergências e intervenções. Não apenas os sujeitos devem ser desconstruídos, mas também os muros que erguemos contra eles. Estamos falando de gente, e gente querendo ajudar nunca será algo negativo.
Um ativismo que desconsidera o contexto que está inserido e só aceita que os interlocutores concordem ou se calem, cedo ou tarde, presta mais um desserviço à própria causa.
Alianças são necessárias, inclusive diante do cenário político atual. Um ativismo que desconsidera o contexto que está inserido e só aceita que os interlocutores concordem ou se calem, cedo ou tarde, presta mais um desserviço à própria causa. Muito pode ser conquistado se enxergarmos a potência que há na dinâmica com o outro, sem precisar torná-lo um recipiente vazio. Ele é sempre uma ponte, nunca um fim. Ocasionalmente, tudo que precisamos é de alguém que nos pergunte: o que temos a perder com isso?
Ego, algo que não é compatível com movimento social.
Por Travesti Reflexiva
Imagem destacada: detalhe de um poster de José Gómez Fresquet (Frémez)
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