Manipulação emocional no feminismo: todo dia um 7×1

A comunicação virtual tende, naturalmente, a ser mais fria e impessoal do que um contato direto. Entretanto, as ferramentas que a tecnologia nos disponibiliza facilitam conversas e diálogos que não seriam possíveis sem computadores e conexão de internet, principalmente por questões geográficas e de tempo.

Contudo, ao mesmo tempo, esta comunicação acontece de forma muito rápida, o que não nos dá muito espaço para digerir informações, criar teses, antíteses e sínteses antes de uma conclusão. Quando falamos de política, onde muitos temas pululam constantemente, notícias surgem em caráter extraordinário e temas densos vêm à tona, é necessário ter tempo suficiente para compreender fatores históricos, econômicos, psicológicos, antropológicos e sociológicos. Estamos o tempo todo envoltos por essas ciências, mesmo quando não percebemos.

Tudo isso, aliado a narcisismo e ansiedade, traços humanos presentes em todos nós em maior ou menor grau, dependendo de muitos outros fatores da vida de cada um de nós, pode vir a gerar uma bomba relógio. Pressa mais vontade de ter razão, mais teimosia, mais desinformação tornam os movimentos sociais inflamados e deixam todos com os nervos à flor da pele. Pessoalmente, não acredito que haja alguém totalmente imune a todas essas sensações. Aguentar boicotes, chantagens, culpabilizações e competitividade, deixa qualquer um em perto do limite.

Um tempo atrás descobri esse texto sobre “trashing”, ou, detonação. Confesso que demorei muito tempo para lê-lo. Ele ficou guardado nos favoritos uns longos meses até que eu finalmente dei uma chance aos escritos, e me deparei com um material que, basicamente, descreve a reclamação de muitas mulheres com quem convivo virtualmente e, vez ou outra, presencialmente, em eventos. Mas, não raramente, a prática de trashing pode descrever nosso próprio modo de operação. Quão livres do sentimento de competição estamos, ainda que com todo o discurso sororário que aprendemos?

O que eu percebi em muitos meses de coletivos feministas, debates sérios — outros, nem tanto — é que existe uma manipulação emocional fortíssima no feminismo.

Não é o feminismo que é tóxico ou nocivo, são as pessoas.

Me deparei conversando com uma moça branca há um tempo e perguntando por que ela havia feito um post sobre privilégio branco, não como reflexão sobre como agir em uma sociedade racista, mas, exaltando quão privilegiada era por ser branca. A primeira coisa que eu, como mulher negra, pensei foi: ela tá sendo racista pra caramba ou eu sou paranoica?

E essa sensação só passou quando vi outras mulheres negras igualmente descontentes com a situação. Me pondo de fora, consegui racionalizar o que estava havendo ali. Ela me explicou que não via problema em falar sobre negros, afinal convive com um — e ou eu estou enlouquecendo ou minha memória está indo para o lixo, porque não lembro de ter dito que brancos não podem falar sobre negros — hehe.

As redes também trouxeram até mim moças brancas chamando de colonizados TODOS — brancos e negros — que, por algum motivo, mesmo que não explicado, não curtissem o trabalho de um determinado artista visual negro usado na divulgação de uma pop. Falando assim, parece bem fútil usar cantora pop como pauta política, né?

E é. Um bando de marmanjo que se diz politizado, teorizando em cima de ator e cantor a cada foto postada no Instagram, a cada álbum lançado. Eu tenho vontade de morder meu cotovelo, admito. E me dá raiva, sim.

Não curto falar frases como “o feminismo se tornou blá blá blá”, porque não existe “o feminismo”. Existe uma ideologia, cujas formas de ação podem ser diversas, e o objetivo do que foi chamado de feminismo sempre foi a emancipação das mulheres e a luta por seus direitos civis e reprodutivos. Então, longe de mim falar que qualquer pataquada mequetrefe de rede social é culpa do feminismo. E eu percebo isso muito (porém, não apenas) com a relação de algumas feministas brancas sobre mulheres negras em uma relação de paternalismo.

E se você chegou até aqui, talvez esteja pensando: mas, miga, tanto problema pra gente se preocupar, violência, misoginia, opressão, mulheres morrendo…e você preocupada com tretinha de internet? CÊJURA, GABIRELA?.

Juro, porque de fato, tretinha de internet pode soar como algo bem fútil. Mas, a partir do momento em que as relações virtuais afetam o real, causam mal estar e afetam negativamente um trabalho, já dizia o ditado: algo de errado não está certo. Não estou falando de tecnologia, estou falando de seres humanos. Neste contexto, a tecnologia é só um veículo, não o objeto do debate. Talvez ainda falte ainda mais maturidade nossa (é óbvio que eu estou me incluindo nisso) para lidar com esses novos meios de comunicação para gerir projetos sociais. E a questão é justamente quão fúteis têm sido esses comportamentos e relacionamentos.

Talvez falte maturidade emocional para compreender que feminismo não é passarela (SPFW tá aí pra isso). Como eu li em um texto da Angela Davis que veio muito a calhar esta semana:

O feminismo do “faça acontecer”* e outras variantes do feminismo empresarial falharam para a esmagadora maioria de nós, que não têm acesso à autopromoção e ao avanço individual e cujas condições de vida só podem ser melhoradas através de políticas que defendam a reprodução social, a justiça reprodutiva segura e garanta direitos trabalhistas. Como vemos, a nova onda de mobilização das mulheres deve abordar todas essas preocupações de forma frontal. Deve ser um feminismo para 99% das pessoas.

E antes que surja o primeiro desavisado: não estou questionando ou diminuindo que mulheres feministas (ou qualquer ativista) ganhem notoriedade graças ao seu trabalho — até porque seria um tiro no meu próprio pé e uma hipocrisia em relação ao reconhecimento que eu também recebo — e não canso de agradecer a todos os que me acompanham. Porém, mantenho em mente que isso não é estrelato.

Mas, a tendência da comunicação digital entre feministas se tornou um poço de chorume, com um nível altíssimo de gaslight entre mulheres. É muito drama pra pouca resolução. É muita feminista branca se pondo como salvadora, erguendo bandeira do “mais amor, por favor” e chamando negras de raivosas — seja nas entrelinhas ou explicitamente. É open bar de racismo e colonialismo. O que me lembra que quero muito falar um dia sobre raiva, o sentimento legítimo que qualquer humano sente e que não o torna mais primitivo ou selvagem do que seu coleguinha good vibes.

O que é perceptível é um comportamento passivo-agressivo que te faz sentir louca e detestável. Como se nada em você fosse apreciável, afinal: és louca e não aceitou ajuda da amiga privilegiada. Ah, além de louca, você também é arrogante se não aceitar as comemorações por migalha que o “feminismo de internet”(SIC) adotou sob o termo “pelo menos é uma pequena mudança”.

Não é o feminismo que é tóxico ou nocivo, são as pessoas. Não é o signo, não são os cosmos, são as pessoas, e o que elas, como adultas, escolhem fazer com o que têm em mãos. E este também é um aspecto humano. Qualquer mulher feminista pode ser uma ótima teorizadora de gênero e, ao mesmo tempo, por personalidade, cultura ou outro fator intrínseco ou externo, causar dano a outra mulher.

Esse tipo de coisa não se resolve em coletivo feminista, mas em divã de psicólogo ou psicanalista, onde levamos nossas frustrações e nossas sombras, aprendendo a lidar com nossas dores e aprendendo a não ferir. A outra parte resolve-se com bom senso, aquela coisa que nossos pais nos ensinam quando somos pequenos dizendo: você não pode meter um tapa na cara do amiguinho da escola só porque ele não agiu como você queria.

Por Gabriela Moura
Texto originalmente publicado no medium da autora e reproduzido aqui com sua autorização
Imagem destacada: detalhe de “Fighting women”, de Léonard Defrance, via Wikimedia Commons

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