Se feminismo é reeducar, por que estamos punindo?

Esses tempos li um livro* sobre pedagogia, educação em escolas de ensino fundamental, e fiz uma reflexão sobre aquele tema dentro da luta contra o machismo e o patriarcado. Nesse livro, as escolas eram comparadas, ironicamente, a presídios. A lógica do encarceramento que nunca reeducou cidadão algum, que sempre aprisionou os pretos e pobres do mundo inteiro tentando conter a suposta “violência” dos que nunca tiveram oportunidade.

A sociedade vê sentido em punir, repreender, torturar, “assim aprende e não faz mais”. Isso acontece em muitas instituições, com diversos tipos de tortura, em diferentes níveis. Na igreja quem não paga o dízimo sente-se condenado. Na escola quem não atinge a nota sete reprova e sente todo um esforço mental posto fora, quem não tem vontade de assistir às aulas é vagabundo, não se esforça, tem problemas a serem corrigidos.

No fim, a velha lógica da meritocracia impera, e quem não consegue é porque precisa se esforçar mais um pouquinho, e não porque as instituições têm valores trocados. Será que não estamos institucionalizando nossas lutas diárias? – me perguntei.

Se hoje vivemos em uma cultura sem nem conseguir compreender o quão sexista, racista e pontuada por ódio de classes ela consegue ser é porque, certamente, fomos educados de formas erradas. Recebemos os valores errados em casa, na escola, no trabalho, durante a nossa socialização enquanto indivíduos. Reproduzimos os comportamentos que nos ensinaram, às vezes até mesmo quando temos a consciência de termos sido criados em ambientes que podem até pregar liberdade para todos, mas que facilitam liberdade para homens brancos e com dinheiro.

Sentamos que nem menina, comemos que nem menina, nos vestimos que nem menina – e tantas outras imposições que a criação, só pelo recorte do gênero, nos impõe. Não rompemos com todas as barreiras visto que agora já temos boa parte desses valores como corretos e a reflexão sobre eles nem sempre é suficiente para que queiramos destruí-los.

Assumindo essa posição de que sim, fomos criados e criadas em e por uma sociedade com raízes preconceituosas – e chegar nas raízes às vezes nos dói como bater o dedinho na quina por trinta vezes consecutivas –, o que fazemos conosco?

Aí que o livro de pedagogia entra: se admitimos que o problema foi má educação, má distribuição de valores, a solução parece ser através da reeducação. Acaba sendo, mesmo, como uma reabilitação com redução de danos: vamos, aos poucos, diminuindo as doses da droga patriarcal, substituindo por uma mais leve, até que, um dia, nos cure.

O que me pareceu interessante para o feminismo foi tentar ver ele como uma luta por reeducação – e não imposição, e não encarceramento, e não punição, e não violência. Por vezes nos tomamos pelo ódio, ódio de quem passou a vida inteira sofrendo restrições por ter nascido com uma vagina.

Feminismo como luta por reeducação – e não imposição

O ódio é sim justificável e ele existe, e acredito que jamais devemos duvidar da raiva de uma pessoa oprimida, ela pode vir de diversas formas porque às vezes a consciência a respeito da violência que sofremos pesa mais do que podemos suportar.

Eu vivi o ano de 2016 com muita raiva, com muito ódio, eu via machismo em tudo e por vezes duvidava da minha sanidade mental. “Tô louca”, aquela frase que toda mulher já plantou – ou teve plantada – na própria cabeça. Meu ódio foi genuíno, mas meu ódio me cegou – e admitir isso também dói. Foi uma autocrítica pesada que já me custou lágrimas e tanto. Me cegou mesmo, sabe? Cheguei ao ponto de não ver mais sentido na luta que eu pregava porque estava recheada de raiva, raiva, raiva.

E, refletindo sobre como é necessário enxergar pedagogia na luta, em como precisamos nos reeducar e reeducar nossos amigos, familiares, companheiros e companheiras, pensei em todas as vezes que a minha raiva me tornou intolerante e impediu o diálogo e a oportunidade de crescimento e troca.

Hoje trago comigo valores muito parecidos com os do feminismo em que eu acreditava quando tomada pela raiva, mas entendi que de nada adiantava ter alguns pensamentos a respeito da violência de gênero para mantê-los na minha bolha – da minha cabeça, das minhas amigas, das minhas relações íntimas. A bolha nos protege, mesmo. Encontramos iguais, às vezes com a mesma intensidade de ódio, e aquele mundo parece perfeito para quem nunca encontrou seu lugar. Mas às vezes, lá dentro, esquecemos que a sociedade ainda não é nossa bolha. Ainda matam LGBTs, negros e negras, mulheres e pobres lá fora. Ainda nos matam por termos nascido assim. E eu entendo a raiva, porque ela ainda existe aqui dentro, porque algumas situações irão me enfurecer. Mas entendi que minha raiva, sozinha, não corrobora para a construção de uma sociedade igualitária e democrática.

Minha raiva, sozinha, não corrobora para a construção de uma sociedade igualitária e democrática.

Se somos todos alunos aprendendo a nos tornar menos preconceituosos conosco e com os outros, pensemos então como alunos. A vontade de ler, estudar, aprender, só vem quando entendemos a verdadeira necessidade e importância do assunto a ser lido, estudado, aprendido. Só conseguimos sentar e enfiar a cabeça em um livro que nos desperta curiosidade, e sabemos que nossos professores às vezes também se esquecem de despertar essa curiosidade – apenas nos punem por não conseguir, deveria ter tentado mais, de novo a mesma história.

Se somos também professores em uma escola sem lista de chamada, precisamos entender que a raiva dos próprios alunos pode nos impedir de tornar o conteúdo atrativo e, por consequência, não ter mais alunos em sala – já que ninguém precisa de 75% de presença para passar.

Ninguém aprende simplesmente porque é punido, ou porque é elogiado (mesmo que o elogio ainda funcione melhor do que a punição). Aprendemos quando refletimos, e a reflexão parece mesmo a arma mais poderosa da humanidade. Meu exercício para 2017 é diminuir o “macho quer biscoito” e aplicar mais o “ainda bem que alguém está reproduzindo os valores em que eu acredito por aí”. Gratidão, sabe? Gratidão a quem nos ensina, gratidão a quem ensina os outros, e assim agradecemos entre nós por estarmos ousando tentar tornar o mundo melhor.

Por Luiza Dornelles
Imagem destacada: detalhe de “Two Women Teaching a Child to Walk“, Rembrandt

*Paedagogica Pharmacopoeia (BARCELLOS, Guy Barros); Editora: Cinco Continent

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