Precisamos generalizar a ocorrência do machismo

Começo com uma generalização: em todo debate acirrado sobre os abusos masculinos para com mulheres, tem sempre alguém para dizer “nem todo homem (faz isso)” e “existe muita mulher abusiva”. É fácil falar do alto do pedestal. Esse é o típico discurso de quem nunca sofreu as piores facetas do machismo, essa ferramenta de manutenção do sistema patriarcal.

O sistema patriarcal é esse mundo onde a maioria dos cargos de governantes, dirigentes, presidentes, chefes, ou seja, os “cargos de autoridade”, são ocupados por homens, mesmo que a força de trabalho ou a população estudantil seja de maioria feminina, como é o caso nas universidades de países ocidentais.

O machismo, por sua vez, é a arma de repressão desse sistema que procura, desde o nascimento, criar pessoas dóceis e que “saibam o seu lugar”. Quando a socialização (o comportamento criado artificialmente nas mulheres para que obedeçam aos homens sem protestar) “falha” ligeiramente, o machismo entra em ação, fazendo uso de instrumentos de violência para fazer o objeto da opressão temer e, por fim, voltar a obedecer.

É uma arma muito eficiente. O sistema patriarcal retira das mulheres a capacidade de decisão. Elas crescem acreditando que precisam ser protegidas pelos homens. Essa crença procura formas tão sutis de se embrenhar em nossas mentes que a maioria de nós não percebe que elas estão agindo no nosso comportamento.

Pode ser muito difícil detectar os instrumentos de opressão das mulheres quando elas acreditam que estão sendo poupadas, e que tem privilégios e direitos garantidos. Mas a realidade é muito, muito diferente disso. Nós precisamos generalizar o machismo, porque há mulheres que são abusadas mesmo sendo brancas, magras, que nunca estiveram em situação de vulnerabilidade financeira, embora sem luxo, que tinham tudo para estar imunes a violência, ou que foram criadas em “berço de ouro”, segundo os pregadores de que “nem todo homem” e de “mulher também abusa”. Se nem as privilegiadas financeiramente e as brancas escapam, imaginem a situação de vulnerabilidade de quem não tem nenhum desses privilégios.

Precisamos falar para as mulheres que o machismo e o sistema patriarcal não são coisas de um passado distante. São instrumentos presentes no dia a dia de TODAS as mulheres do mundo neste momento.

Precisamos falar para as mulheres que o machismo e o sistema patriarcal não são coisas de um passado distante. São instrumentos presentes no dia a dia de TODAS as mulheres do mundo neste momento. Até mesmo mulheres que vivem em sociedades matriarcais remanescentes vão sofrer machismo se entrarem em contato com a comunidade vizinha, porque mesmo essas comunidades estão em países governados por homens e são eles que ditam as regras do jogo.

Não acredita? Você, mulher, que está lendo esse texto, acha que ninguém manda em você? Que a sociedade não está organizada para beneficiar somente os homens e nunca as mulheres? Isso tudo é uma grande teoria da conspiração, é coisa da cabeça de gente louca? Bem, é isso que querem nos fazer acreditar. Enquanto há mulheres que acreditam que elas têm liberdade, muitas sofrerão mutilação genital, serão proibidas de estudar, despedidas por engravidar, presas por abortar, massacradas por protestar.

Muitas estão silenciadas. Mesmo reconhecendo que foram estupradas pelo próprio marido. O estupro toma muitas formas. Pode ser aquela vez que você não queria fazer sexo de jeito nenhum, e ele forçou a barra. Não se parece nada com o estupro praticado por estranhos. Você conhece os movimentos da pessoa. Essa pessoa é seu marido e vocês já fizeram sexo consentido muitas vezes, muitas vezes começado por você. E mesmo assim, apareceu aquele dia que você não queria, e ele “te seduziu”. Vão haver vezes que será, mesmo, sedução, e você se sentirá ardentemente desejada. Mas se você chorar convulsivamente no final, foi estupro. Se você acordar de manhã com as calças arriadas e o marido lhe disser que adorou a noite passada e você não lembrar, foi estupro.

Isso tudo faz parte da colonização dos corpos femininos. Nenhuma mulher está imune a isso. Você pode não saber, não sentir, não perceber. Mas ela está aí. E pode reparar na quantidade de homens que vai lhe dizer que isso é paranóia sua. Nos chamar de louca é uma tática eficaz. Criaram até uma doença feminina, a histeria, que nada mais era do que impulso sexual não satisfeito – sim, mulheres eram proibidas de ter prazer sexual e o “problema” era minimizado com masturbação em consultório médico; leiam sobre a história do vibrador.

Enquanto não generalizarmos o machismo, enquanto não reconhecermos que somos todas prisioneiras e que ninguém se liberta de uma prisão fazendo apenas o que o algoz está disposto a oferecer, as mulheres permanecerão nesse ciclo de violência gratuita. Meninas sendo inferiorizadas desde cedo para que nunca atinjam o seu potencial intelectual. Aceitando migalhas. Acreditando que somos frágeis. Sendo interrompidas, silenciadas, humilhadas por homens que tentam falar mais alto do que nós e nos explicar como são as coisas, porque eles, inclusive, acreditam que sabem mais do que nós o que é ser uma mulher, o que é menstruar, gestar, parir, amamentar. Eles não sabem. Eles não devem interferir. Só nós temos essas experiências e elas a nós pertencem.

Nenhuma mulher está imune ao machismo, seja de que classe social e de qual cor de pele ela for. Vamos generalizar a percepção da violência cometida a todo minuto contra as mulheres. Quem sabe, assim, possamos um dia generalizar, entre as mulheres, a louca ideia de elas são seres humanos que merecem viver com dignidade e respeito.

Por Andreia Nobre
Imagem destacada: The Machismo Project, Gary Dempsey & Conall Cary com curadoria de Gerald Heffernan

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