Uma reflexão feminista sobre racismo
Durante alguns anos da minha vida, fiquei sem entender por que a minha família de Pelotas torcia tanto pelos negros que apareciam nos programas de televisão. Uma alienação que a classe média me permitiu ter, muito em função da convivência majoritariamente com brancos, que dava a falsa sensação de inclusão social. Mas aí a gente vai crescendo, se situando como pessoa na vida e na sociedade, sentindo uns preconceitos na pele (sem trocadilhos) e entende que nem tudo é o que parece. Assim, como a maravilhosa Joice Berth, com o tempo entendi que “ser negro é ser luta”.
Hoje, entendo perfeitamente a minha família preta e torço junto, rio junto, choro junto, comemoro junto com e por qualquer outro preto que apareça na mídia. Mesmo que eu não conheça a pessoa e mesmo que a gente nunca se fale – porque ver uma possibilidade de conquista e representatividade na mão de um negro deve ser motivo para se comemorar sempre. Sempre.
Contudo, apesar dessas possibilidades de êxito, a mídia brasileira segue retratando pessoas negras apenas como escravas, domésticas, pessoas que sofrem, pobres ou, no máximo, como um jogador de futebol. Caricaturas muito bem assimiladas pela sociedade, a exemplo da campanha divulgada e assinada pelo Governo do Estado do Paraná, em novembro de 2016, em que a figura do negro só foi indicada em posições subalternas no mercado de trabalho, evidenciando que ainda vivemos na lógica de um sistema institucional racista e colonial. Veja o filme:
Historicamente, a população negra não tem poder: “A abolição da escravatura jogou milhares de famílias negras miseráveis nas ruas, originando um turbilhão de pretos pobres. Quando conseguiam trabalho, era por um prato de comida e míseros trocados. A pobreza da raça só fazia aumentar. Com isso, ser negro em nosso País indica ser pobre até hoje.” (Mário Corrêa, 59 anos, engenheiro). Apesar de estarmos há quase 130 anos do pós-abolição, os avanços na questão racial são pequenos e as distâncias entre negros e brancos são gigantescas.
Problema do branco, privilégio do branco
Em entrevista dada a Djamila Ribeiro, em março de 2016, a artista interdisciplinar portuguesa Grada Kilomba disse que “as pessoas brancas não se veem como brancas, se veem como pessoas. Branco não se racializa. E é exatamente essa equação, ‘sou branca e por isso sou uma pessoa’ e esse ser pessoa é a norma, que mantém a estrutura colonial e o racismo. E essa centralidade do homem branco não é marcada. […] Eu só me torno diferente se a pessoa branca se vê como ponto de referência, como a norma da qual eu difiro. Quando eu me coloco como a norma da qual os outros diferem de mim, aí os outros se tornam diferentes de mim. Então é preciso a desconstrução do que é diferença.”
Diferente de quem? Quem é diferente?
Enquanto a gente não entende o racismo, acha que o problema é conosco. O racismo não é um problema de nós, negros, mas sim dos brancos. Um problema criado por eles, como autoafirmação pessoal e política. Racismo tem a ver com poder e com privilégios.
E há quem diga que agora tudo é racismo, mas a verdade é que tudo sempre foi racismo. A diferença é que hoje nós estamos lutando, confrontando, mais instruídos sobre discriminação racial e capazes de perceber o preconceito tão arraigado nas mais simples atitudes da sociedade. “O racismo e a proliferação do racismo são um mal que, unidos a essa falta de consideração para com esse período sinistro da história, são foda de combater. E não adianta combater o racismo sem antes combater essa expressão: vitimismo. Todo o branco deveria estar muito atento a essas duas palavrinhas, ‘racismo’ e ‘vitimismo’, porque são poucos os brancos que sabem o que realmente é racismo, mas todos eles falam em vitimismo.” (Zudizilla, 31 anos, rapper, designer e artista plástico)
O preconceito racial mata, machuca, traumatiza, trava, impede a segurança física e pessoal.
A raça negra é a raça que mais morre no Brasil e o número é ainda mais assustador quando falamos em mulheres negras: em 10 anos, houve o aumento de 54% no número de homicídios de mulheres negras, segundo estudo realizado pela Flacso. Entretanto, casos como o de Claudia Silva Ferreira e, o mais recente, de Maria Eduarda – vítima de três balas perdidas dentro da própria escola, no ultimo dia 30 – não comovem a população branca. É mais importante debater sobre uma garota branca poder ou não usar turbante, ridicularizar o movimento negro e sustentar argumentos (completamente vazios) sobre racismo reverso.
Aqui no Brasil, cerca de 90% das pessoas afirmam que racismo existe e que já presenciaram situações de racismo, enquanto 92% se afirmam não racistas. Uma conta que, obviamente, não fecha e que resulta da falta de autocrítica da pessoa branca, que não se inclui no conjunto de práticas preconceituosas e não cogita nem por um segundo que pode ser racista.
Pouquíssimas são as pessoas brancas que sabem identificar uma situação de racismo, daquelas mais sutis. A maioria não passa do lugar comum e a ignorância sobre o assunto vem da recusa em se aprofundar nessa questão tão pesada e dolorida para os negros e, por consequência, da falta de importância dada à mesma. E aí a gente fica aqui, falando de preto para preto, como se o fim do racismo dependesse de nós. E essa é a maior hipocrisia do racista brasileiro, que acha o racismo insuportável, mas segue na argumentação rasa quando apontamos oportunidades de se mudar a situação.
“Para mim, o racismo é uma doença. Então, quem tem que se tratar é a pessoa que se sente mal com a minha presença, e não eu ficar fazendo com que ela me aceite, afinal o problema está com ela e não comigo” (Elisa Calderón, 30 anos, jornalista).
Pessoas brancas escondem seu preconceito principalmente de si mesmas e por infinitos motivos – para isso, covardia e conveniência são as palavras-chave. Enquanto isso, a gente continua sendo seguido em supermercados, não sendo atendido em lojas, tendo que atravessar a rua para não assustar os brancos, e segue sendo aqueles dois ou três nas salas das faculdades e nos ambientes corporativos.
Reciclagem de pensamentos e conhecimentos
“Eu sempre tive bem claro, da minha maneira, que ninguém passaria por cima de meus filhos por serem negros. E também não deixariam de estudar ou de frequentar nenhum ambiente que estivesse ao seu alcance por eles serem negros.” (Maria Corrêa, 64 anos, aposentada).
Existe uma necessidade urgente de cada pessoa branca se questionar onde esconde o próprio racismo. É importante que olhem para as suas vidas com honestidade e que, além de reconhecer os seus privilégios, trabalhem para diminuir os abismos sociais que há entre negros e brancos. “Me ajuda muito uma pessoa de pele branca trazer à tona questões sobre a diversidade em geral, e que ela leve isso para outros grupos e para as atitudes dela com intenção de inclusão sempre.” (Louinnie Dandara, 29 anos, publicitária)
Aos que se dizem não racistas, quantos livros de autores negros já leram? Quantos filmes sobre a vida de negros (para além da escravidão) já assistiram? A quantos eventos que discutem de forma séria as questões raciais já foram? Quais são os reais problemas e limitações que a população negra brasileira enfrenta diariamente?
Se desconstruir não é só se relacionar com negros: “Meus amigos brancos, acima de tudo, passam por uma reciclagem de pensamentos onde eles tentam enxergar o mundo por uma outra ótica, o que implica assistir mais filmes com nossas temáticas, ler mais livros de autores negros. Isso automaticamente vai mostrando para eles todo o poder de produção intelectual e obviamente cultural do preto na sociedade contemporânea. Eles desconstroem o padrão academicista de educação.” (Zudizilla)
Uma das propostas da causa negra é a troca e a valorização da cultura e de conteúdos (nas suas diferentes áreas e esferas), produzidos por negros, com princípios pautados em uma forma de sociedade que, academicamente, nunca se foi permitido estudar. Aprendemos muito sobre a história nórdica (política, cultural e religiosa) nas salas de aula, e pouquíssimo sabemos sobre as origens, conquistas, cultura, religiões, etc., dos negros.
Um desconhecimento que faz com que negras de turbante ou vestidas de branco sejam chamadas de macumbeiras nas ruas, que faz com que pessoas negras não sejam consideradas inteligentes (pelo menos não tão inteligentes quanto os brancos), e que por fim faz com que a gente tenha que fazer absolutamente tudo duas vezes melhor para nos “igualarmos” a um branco.
Negro tem nome, tem sobrenome, tem beleza, tem história, tem cultura, tem religião, tem sentimentos, tem valor. Como qualquer outro ser humano.
Para vermos uma evolução real nas relações sociais, precisamos que os que puderem e quiserem se engajar estudem para formar melhores brancos, assim como nós estamos estimulando outros negros à conversa, ao diálogo e não à discussão. A troca de conhecimento é capaz de nos levar ao equilíbrio, e isso depende de brancos e pretos.
Mercado de trabalho, educação e representatividade
Um empresário que não entrevista e muito menos contrata pessoas negras. Casos como o recentemente denunciado pelo Theo Van Der Loo, presidente da Bayer, não são raros. Inúmeras são as pessoas com o poder de decisão na mão e que não querem saber de negros em suas equipes. A cor ainda fala mais alto e ser preto hoje ainda está muito conectado com a falta de oportunidades. Por sermos vistos como diferentes (como cita Grada Kilomba) e essa diferença ser considerada problemática, ficamos de fora das estruturas de poder, que é o racismo estrutural, institucional, acadêmico, do dia a dia.
A ausência de negros em ambientes corporativos, midiáticos, acadêmicos e em campanhas publicitárias é extremamente naturalizada. “Ainda hoje, alguns clientes se surpreendem ao ver que o engenheiro responsável pelo projeto é um negro. Imagine há 20 anos! O problema no mercado de trabalho está principalmente nos adultos acima dos 40/45 anos de idade que estão em posições de gestão ou comando, e que não conseguem ver igualdades.” (Mário Corrêa). Por mais que estejamos conseguindo nos fazer um pouco maior em número nas salas de aula do ensino superior, graças sim às cotas e bolsas, preconceitos contra a nossa cor de pele ainda nos barram de chegar a certas posições e profissões.
“Meus amigos podem me ajudar abordando temas como a diversidade em geral nas suas atividades diárias. Eles são contratantes e colegas e têm na mão o poder de questionamento sobre a inclusão do negro no mercado de trabalho, por exemplo.” (Louinnie).
É imprescindível que os brancos entendam o seu papel na luta contra o racismo e que líderes brancos não racistas tenham consciência de que não serão demitidos por denunciar racismo, machismo, ou qualquer tipo de afronta à lei e aos direitos humanos.
Feminismo branco e mulheres negras
Depois de tudo dito, seria mesmo a misoginia a única forma de opressão que exige erradicação para que as mulheres sejam livres? O feminismo branco precisa evoluir e integrar-se às sociedades multiculturais, se estiver genuinamente preocupado com a libertação de todas as mulheres.
A lógica do racismo é exatamente a mesma do machismo: por serem homens, possuem certas garantias e privilégios em uma sociedade estruturalmente machista. Se substituirmos homens por “brancos” e machista por “racista”, começa-se a entender o significado de racismo.
Atualmente, como feminista e participante de um grupo feminista majoritariamente branco (novidade?), vejo mulheres brancas repetindo o mesmíssimo comportamento opressor que tanto julgam nos homens, mas para com as mulheres negras. Somos taxadas de grosseiras e constantemente questionadas sobre o que falamos de forma completamente hostil, como se fôssemos burras. Há uso de token para validar argumentos racistas, e ainda há as que queiram falar por nós, como se realmente fosse possível uma branca saber mais do que acontece na vida dos negros do que uma preta e, de novo, subjugando o intelecto das mulheres negras. E nessas horas eu digo que é muito, muito difícil não perder a calma.
Ser mulher e negra é das realidades mais solitárias que se pode viver.
Ser mulher e negra é das realidades mais solitárias que se pode viver. O referencial de inteligência não é o nosso, o referencial de beleza não é o nosso, o referencial de mulher para se construir uma família ou sequer andar de mãos dadas na rua não somos nós. E, quando uma mulher negra entende e se abre para o feminismo, o que ela espera é também acolhimento, e se deparar com mais racistas é uma frustração do tamanho de um elefante, para não dizer maior.
É muito importante que feministas brancas ouçam de fato as mulheres negras. Entendam, estudem, respeitem, valorizem mulheres negras. Preocupem-se com os seus e os nossos direitos. Isso sim é sororidade.
Por Poliana Corrêa
Imagem destacada: still do videoclipe (polêmico) Bitch Better Have My Money, de Rihanna
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